quinta-feira, dezembro 21, 2006

O poeta que sacaneia o mundo


Zeh Gustavo é a multiplicidade em sua essência. Diversos homens em um só. Poeta, músico, revisor, jornalista cultural, sindicalista, boêmio, entre outras coisas, não necessariamente nessa mesma ordem. Nasceu depois que Gustavo Dumas, autor do Mito da origem do futebol (Ed. Cone Sul, 1997) e O povo e o populacro (Ed. Cone Sul, 1998), escreveu Solturas, balões e bolinhas de papel (Damará, 2001) e lançou seu primeiro livro, Idade do Zero (Escrituras Editora, 2005). “O Dumas é (um pouco) mais formal, assina artigos bravos, faz política sindical, corre na frente. O Zeh é um vagabundo que canta samba-de-breque, fanfarreia, traga um sem-número de copos de boa pinga por noite, usa chapéu de malandro – como se um deles fosse”, explica. Mas, a (aparente) dualidade entre Zeh Gustavo x Gustavo Dumas é um alimento de si mesma. “Sem o Gustavo não existiria o Zeh, pois preciso dos elementos do mundo de um para dar vida ao outro”.

Origens

A trajetória literária de Gustavo Dumas teve início com a leitura de notícias de esporte e política nas páginas dos jornais, de onde se inspirou para escrever redações no colégio. À sombra das chuteiras imortais, de Nelson Rodrigues, foi o primeiro livro espontaneamente lido, presente dado pelo tio. Foi também do genial escritor, jornalista e dramaturgo o primeiro livro comprado por Dumas: O casamento, lembra. De Nelson, Dumas vê ainda outras similaridades. “Minha família era muito pobre e a questão principal era sobreviver. Mas sobreviver com certa pompa farsesca. A família de Nelson passava fome mas não se mudava de Copacabana”. Além disso, ambos tinham em comum o (mau)* gosto futebolístico de torcer pelo tricolor das Laranjeiras, como faz questão de frisar o autor.

Emociona-se ao lembrar da infância. “A sensibilidade e o sentimento de luta foram marcantes. Isto entrou na minha visão de mundo e influencia diretamente, não só na minha poesia, como em qualquer atividade que exerço hoje. Quero, no mínimo, sacanear o mundo”. E volta a lembrar do tio. “Foi a figura paterna mais presente em minha vida, o principal personagem boêmio-intelectual da minha família”. Do pai, diz apenas que está vivo, “por aí”, mas não volta a tocar no assunto. Dele fala em Família tipo assim, poema de Idade do Zero:

Meu pai sagrou-se um grave Estabelecedor de Réguas.
Tinha desajeitamentos pois que algumas réguas entortavam contrasigo mesmo.
Viveu bastante, como dizem.
Com o tempo foi tornado cabeça dura para modo de agüentar as próprias réguas que ele criara
.

Hoje, admite-se desiludido e mais maduro. “Não tenho mais a raiva que tinha antes. Agora vejo o humor como a melhor maneira de agredir. Sinto-me cansado mas não perco a ternura jamais!”.

Poesia Práxis


Zeh Gustavo é um dos novos e bons valores da poesia práxis, surgida no Brasil em 1962, com a publicação de Lavra lavra, de Mário Chamie. Nas palavras da crítica Nelly Novaes Coelho, Chamie “faz da poesia um ato imperativo que incita ao 'fazer'. Assume o 'tempo presente' e o 'homem' que nele vive. Finca os pés no 'espaço concreto' onde a vida se cumpre”. Superficialmente falando, a poesia práxis chega para se opor ao concretismo, movimento de destaque na década de 50, valorizando o conteúdo em detrimento da forma. Outro expoente da poesia práxis é Cassiano Ricardo. E é justamente Mário Chamie quem assina o prefácio de Idade do Zero:

Considerando-se “alguém”, o poeta veio a entender que “o nosso tempo é um estágio zero”, feito de “desacontecimentos acelerados”, em todas as suas instâncias de realidade (a rua, a casa, a família, o poder, o estado, o trabalho). Movido por esse entendimento, faz, então, sua opção negativa, ou seja: nega o sistema de afirmação de si mesmo: “Optei: não ser”. Leia-se: optou não ser refém da maquiagem do tempo, escolheu não anular-se na aporia que reside na “palavra sem liguagem”, e resolveu não submeter-se às “formas desvalidas” que promovem o fetiche cego do chamado “dinamismo produtivo” de nossos dias.

Os primeiros quatro livros escritos pelas mãos de Gustavo Dumas seguem “uma percepção de circularidade do mundo”, como ele mesmo define. Para o próximo – que tem como título provisório A perspectiva do quase - Zeh anuncia uma mudança: “Numa sociedade objetiva, em que o que conta é o produto acabado, o quase é uma forma de perturbar essa hegemonia”, diverte-se. “Não estou negando o produto acabado. Mas acho que o quase é o que há de mais belo: o ator um minuto antes de entrar no palco, o breve momento antes do ‘pegar na mão’, o olhar instantes antes do primeiro beijo, aí é onde reside a beleza da vida”, regozija-se.

Idade do zero

Em 2005, Zeh Gustavo veio à luz em Idade do Zero, colocando para fora a poesia marginal, a troça, o humor e – mais uma vez – o irresistível desejo de sacanear o mundo: “Mudar o mundo é ingenuidade. O humor é a melhor maneira de agredir”. Idade do Zero fala sobre a relação esquizofrênica entre o homem urbano e o mundo moderno. Subversor e contestador, o poeta chega para dar vida à subjetividade perdida nas convenções da contemporaneidade. Neste contexto, se define como um “dessujeito”, como transparece no poema Prostituto da palavra:

Costumo me ater a funções durante o dia
As funções me isolam um pouco de minha disfunção
Elas me deitam impotente
Naquele corre-corre obsessivo
Minha farsa é de plástico
Transita depois anormalmente para o nada


Para ele, o duelo homem x urbanidade não é de hoje “No início do século XX, Machado, Baudelaire e Chaplin já falavam sobre isso. Havia campanhas populares para que não se jogasse merda na rua”, cita. Hoje em dia, cada vez mais, a redenção vem através do consumo. “O capitalismo elimina a subjetividade e, ao mesmo tempo, oferece soluções mágicas, incrivelmente rápidas para o próprio efeito que causa”.

Olhando em volta, Zeh encontra sinais desta decadência. “Temas que deveriam ser o ponto de partida para debates e ações de todos os segmentos da sociedade são transversais, como a ecologia e a cultura, por exemplo”. Saída? “Nossa responsabilidade é resgatar, através da arte, da imprensa, da política, esses temas para que eles venham para o centro das discussões”, aponta.

Outra discussão que o poeta traz à tona é a busca pelo conhecimento em uma sociedade cada vez mais hedonista. “As universidades trabalham como vetores de treinamento e domesticação para o mercado. O resultado disso é a formação de uma elite sem formação intelectual”. E, desta vez, atira para cima da imprensa. “A mídia é um instrumento deste sistema. A tendência do jornalismo é nivelar por baixo. Vejam o crescimento cada vez maior dos jornais ditos populares, que atendem a pessoas emburrecidas. Neles, a opinião é a falta de opinião. E os grandes jornais seguem o mesmo caminho”, dispara.

Mercado literário

Zeh diz que não ambiciona viver de poesia. “Apenas deixar de ter prejuízo com ela”. E tenta explicar por quê. “Dentro do produto livro, a literatura é marginalizada; e dentro do produto literatura a poesia assim também o é”. Causas? “A poesia vem operar os inconscientes do mundo da linguagem e, para uma sociedade que não entende nem mesmo o consciente, como entender o inconsciente?”.

Mas dentro desta mesma sociedade, como deve operar a poesia? “Na contemporaneidade, a poesia esqueceu o eu e, com isso, tenta mascarar a sua subjetividade”. Zeh admite o papel social da poesia, mas sem que isto seja a razão de sua existência. “A poesia precisa se comunicar enquanto ente social, mas não ter isto como sua causa. Eu não acredito no produto artístico que tente, propositadamente, agradar a outrem. Isto não é objeto artístico, não é honesto”.

Ofício de escrever

Mas então o que leva alguém a ser artista? Por que se aventurar em um ofício o qual “a sociedade capitalista não reconhece como trabalho”, como ele mesmo admite? “Em alguns concursos literários, há a explicação de que a ‘preocupação é cultural’, o que significa que não há premiação em dinheiro. Isto me incomoda muito. A cultura é um trabalho e, como tal, deve ser, sim, remunerado pela sociedade capitalista em que vivemos”. O reconhecimento que o artista busca talvez venha de outra natureza. “Todos querem o aval do público, o que não quer dizer escrever para agradar”. Para ele, “a obra literária busca o diálogo e o pior escritor é aquele que fecha a sua obra”.

Zeh Gustavo admite que para se obter este reconhecimento, é preciso fazer concessões. Talvez a primeira seja a auto-censura. “Também tenho a capacidade de pensar politicamente”. Como escritor contratado de uma editora, também precisa treinar a sua tolerância. “Não dou o braço a torcer em determinadas coisas como, por exemplo, trocar uma palavra por outra sugerida, por que isto é uma questão de autoria”. Mas ele reconhece que a troca de opiniões também pode ser importante. “Também não dou uma banana, pois o olhar do editor é também o olhar do leitor”.

Música

Por falar em reconhecimento, a música, talvez “pela resposta rápida que se tem do público”, seja o ofício que mais agrade a Zeh Gustavo. É notável o prazer do poeta em falar da atividade, da qual se considera “um intuitivo”. “Faço música de maneira amadora no melhor e no pior sentido. Nada substitui o canto no chuveiro, o batuque numa mesa de bar”. Para ele, o que acontece hoje é o que chama de fenômeno da inversão. “Antes, numa roda de samba, os compositores mostravam suas músicas, cantavam, brincavam, versavam. E aí uma ou outra música ‘pegava’, caía no gosto. Depois, podia ou não ir para o rádio e tocar, fazer sucesso. Hoje a música precisa ser gravada por algum famoso, precisa passar pelo constrangimento do jabá, ‘pegar’ no gosto do público para depois entrar no repertório dos músicos de uma roda de samba”. Assume-se assim como um nostálgico e faz apologia do amadorismo “sem cerimônias”. “Precisamos de um mínimo de sentimento de amadores para fazermos arte, senão tudo perde o seu sentido original. No amadorismo a arte é mais levada a sério”.

Como poeta, o sambista de breque também critica a falta de compromisso com as letras. “Percebo que, na ânsia por querer agradar e vender o seu produto, o músico deixa de experimentar em busca de fórmulas prontas já aceitas por um mercado, no melhor estilo ‘se está bom, deixa como está’”.

Com formação acadêmica em letras e pós-graduado em jornalismo cultural, Gustavo Dumas deu vida ao moleque Zeh, que busca apenas a essência. Com isso, o sambista de breque esbarra em obstáculos vindos de sua falta de academicismo no terreno musical. “Eu mostro minha música e os músicos me perguntam coisas para eles simples: ‘que nota é essa aqui? qual o tom?’. E eu não sou músico, definitivamente, e nunca paro muito pra pensar nisso não, pra mim é secundário, mas não é”. Com intuição, encontra soluções estéticas para os problemas. “Sou artesão, trato os sons sem me preocupar com o nome que eles levam, trato-os qual palavras, com uma diferença fundamental de que o alfabeto e a gramática dos sons eu não domino”. Mas nem por isso se acanha. “Entendo quando os músicos me fazem cara feia. Porém não vou deixar de fazer música por causa deles! Nossos maiores compositores populares não tinham uma boa formação escolar. Eu não tive uma boa formação musical e componho”, afirma desavergonhadamente. E aponta qual caminho está seguindo. “Tenho uma visão primitiva da música. Penso que o artista começa a experimentar para, ao final, chegar ao simples”.

Processo criativo

O poeta recorre a um conceito de arte para explicar sua forma de criar. “A arte é o transporte de um lugar para o outro. Por isso escrevo no ônibus, na barca, indo e vindo de Niterói”. Para transpor para o papel tudo o que seus instintos apreendem, Zeh Gustavo observa. “A observação é uma contemplação atuante. É preciso tornar o mundo uma obra artística, ler o que está escrito na sua frente, mesmo sem que isto esteja explícito. Eu gosto quando as minhas loucuras emergem de alguma coisa que está na minha frente. Procuro enxergar as potencialidades de cada imagem, mesmo que a arte esteja escondida lá no fundo do quadro. A arte repete os vícios loucos da natureza”.

Futuro da arte

Sobre o futuro, ele crê em Andy Wahrol, para quem todos terão 15 segundos de fama. “Vai haver dificuldade de surgir verdadeiros artistas, populares no sentido de hoje, com enormes fã-clubes, como Roberto Carlos, Chico Buarque, Caetano Veloso, por exemplo. A tendência é a da fragmentação”. Zeh credita este fator ao mundo com informações cada vez mais rápidas e perecíveis. “A internet não confere o aval de ‘bom’ que todo artista ambiciona. Sua origem é anárquica. O que é seu grande trunfo é também seu grande problema, pois o conteúdo assimilado pelo público é muito pequeno”. E explica os motivos que o levam a continuar escrevendo. “Tenho uma doce pretensão: a de escrever o que eu tenho que escrever. Isso vai fazer com que um dia eu pare de escrever ou escreva o mesmo de outras formas”.


* observação de caráter meramente pessoal do editor deste blog

quarta-feira, dezembro 13, 2006

CAVEIRÃO NA ZONA SUL

Recém eleito deputado estadual para a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro pelo PSOL, Marcelo Freixo participou do 12º Curso Anual do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), que aconteceu do dia 30 de novembro a 3 de dezembro, no prédio da Funarte, no Centro do Rio. No encontro foi discutida a relação da Mídia com o Estado, de que maneira os veículos de comunicação contribuem para a manutenção da ordem aí estabelecida e as maneiras para se resistir a isso. Representantes de sindicatos e organizações de todo o país voltaram às suas localidades com algumas dicas importantes de como se criar meios de comunicação que venham como alternativa para o pensamento único imposto pelos jornalões, tvs e rádios dos grandes impérios de imprensa deste país.

Freixo participou da mesa A pauta que a imprensa popular e a sindical precisa, mas falou mesmo sobre Direitos Humanos, sua bandeira mais constante. Professor de História, Freixo é consultor do assunto do deputado federal Chico Alencar e pesquisador da ONG Justiça Global. Em quase 20 anos de trajetória, coordenou projetos educativos no sistema penitenciário, presidiu o Conselho da Comunidade da Comarca do Rio de Janeiro, esteve à frente da Comissão de Direitos Humanos da ALERJ e participou do caso do fechamento da Polinter e da campanha contra o “Caveirão”, em parceria com a Anistia Internacional. Filiado ao PT desde 1986, mudou de partido em 2005 quando foi criado o Partido do Socialismo e Liberdade.

Para Freixo, atualmente, o debate dos direitos humanos é um instrumento de transformação social fundamental. “O eixo da luta de classes mudou do portão da fábrica para a entrada da favela. Violência não é só a criminalidade, mas tudo aquilo que fere a dignidade humana”, sentenciou. Ele lembrou que, diariamente, 132 pessoas são assassinadas no Rio de Janeiro – números superiores a qualquer guerra em curso em todo o mundo - e citou o brutal assassinato da socialite Ana Cristina Johanpeter em uma esquina do Leblon por um menor. O deputado, porém, ressaltou que, no mesmo dia, três adolescentes foram assassinados por policiais dentro de um caveirão. “Por que esta notícia não saiu na imprensa?”, questionou, para em seguida, provocar: “não estou aqui defendendo o extermínio de socialites”, no que foi seguido de algumas palmas.

Freixo rebateu as alegações de facções criminosas de que o tráfico é uma forma de contestação social. “O tráfico é necessário para o poder dominante para se manter a lógica capitalista. Não interessa a ele acabar com o tráfico. Por isso toda manifestação de indignação da classe dominante com o que está por aí é hipócrita”. Para ele, o dever da mobilização é de todos. “Todos nós, não só toleramos essa barbárie, como também a legitimamos”. Segundo estatísticas apresentadas por Freixo, 57% dos meninos que ingressam no tráfico têm entre 13 e 15 anos, 46% deles compram roupas com a venda de drogas, 49% saem do tráfico para ganhar mais dinheiro em outras atividades, números que expressam ainda mais a lógica capitalista do negócio.

Polêmico, Freixo bateu forte na política de segurança pública estabelecida pelo clã Garotinho: “O Estado é inimigo da população”. Citou a chamada “polícia mineira”, milícias formadas por policiais civis e militares e bombeiros que operam nas comunidades carentes, dizendo levar a ordem a esses locais, eliminando o tráfico, mas achacando, extorquindo e impondo terror igual ou pior ao exercidos pelos traficantes. “Quem fumar um baseado na rua morre”, disse. Outro alvo de Freixo foi o caveirão, veículo blindado negro com auto-falantes, utilizado oficialmente pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro que reprime não apenas os traficantes, mas todos os moradores das comunidades por onde entra. “O caveirão entra na favela dizendo: ‘eu vim aqui para levar a sua alma’, ‘trabalhador eu varro com a ponta do fuzil’”. E fez, meio em tom de pilhéria, meio sério, duas propostas: “a de que um dia os moradores da favela não desçam para trabalhar no asfalto e a de que o caveirão passe um dia na Vieira Souto dizendo o que diz nas favelas. As mães de Ipanema e Leblon sairiam de branco em passeata e o William Bonner e a Fátima Bernades apareceriam chorando à noite no Jornal Nacional”.

Questionado sobre como levaria o debate dos direitos humanos à Alerj, casa do Legislativo fluminense responsável pela maior “bancada” de sanguessugas, fez um apelo: “Convoco a todos para lotar o auditório da Alerj para reivindicar nossos direitos e brigar por uma política de direitos humanos mais justa”. Sobre os futuros colegas parlamentares, analisou: “existem cinco deputados que brigam pelas mesmas causas que eu”. Sobre os inimigos enumerou: “Álvaro Lins, Wagner Montes, Jair Bolsonaro e seus filhos, Jorge Babu, que é ligado grupos de extermínio, entre outros”, apontou.

De Atenas a Acari pela ponte da poligamia


No mesmo dia foi a vez do antropólogo e historiador Marcos Alvito falar sobre A pesquisa como ferramenta de comunicação. Alvito subiu à mesa aplaudido e começou falando sobre a tese de doutorado inconclusa sobre “As mulheres de Atenas”. O acadêmico estava no Mediterrâneo investigando por que na Grécia Antiga, o adultério não era crime em Esparta, mas sim, o era em Atenas. Alvito descobriu que, como Esparta era um Estado belicista, os guerreiros mais poderosos tinham o pleno direito de reivindicar as belas esposas dos cidadãos comuns para se reproduzirem e perpetuarem uma espécie mais forte, continuando assim, a sua prole de guerreiros. Já em Atenas, o adultério era punido severamente. “O Cornudopoulos levava o Ricardopoulos para praça pública completamente nu e com um vegetal de duplo sentido enterrado... aí mesmo onde vocês estão pensando”, relatou.

Mas Alvito desistiu de sua tese no meio do caminho e voltou para o Brasil. Mais especificamente para Acari, Rio de Janeiro. Ele decidira mudar radicalmente o foco de sua pesquisa para os presos da Penitenciária Lemos de Brito, localizada naquele bairro. O resultado deste trabalho está no livro “As cores de Acari”. O pesquisador, entretanto deparou-se com uma similaridade entre a Grécia e Acari. Não, não foi a beligerância dos soldados de Esparta e os traficantes do subúrbio carioca. Mas sim, o tema da poligamia.

Durante oito anos, reinou na favela o super-traficante Jorge Luiz. Ele era considerado um mito por moradores, inimigos e polícia justamente pelo tempo que se manteve no controle do tráfico na comunidade. Ninguém sabia ao certo a origem de seu poder. Lendas inúmeras havia sobre ele e Alvito decidiu investigar. Logo ele, um branquinho da zona sul do Rio de Janeiro e intelectual da Universidade Federal Fluminense. Infiltrara-se na favela e passava os dias observando e fazendo parte do dia-a-dia dos moradores. “No começo, percebi que a minha presença incomodava, aos poucos, passei a ser tolerado até ser completamente aceito por todos”, disse.

Alvito conversava com os moradores, tomava cerveja e jogava bola com os moradores. Ouvia muito falar sobre Jorge Luiz, mas nunca o havia visto. O boato mais comentado era que o traficante tinha 30 filhos de 12 esposas. A imprensa noticiava esses fatos aos quatro ventos quando se referia ao super-bandido, glamourizando o crime e sustentando todo um folclore com certa dose de romantismo por trás de tudo isso. Certa feita, Alvito foi convidado para um churrasco financiado por Jorge Luiz. Lá ele conheceu um amigo muito próximo do meliante que lhe mostrou algumas contas do tráfico de drogas na comunidade: R$ 20 mil eram gastos com os seus supostos filhos. Então quer dizer que os 30 filhos são mesmo dele, perguntou Alvito. Ele nem mesmo tem certeza se metade deles são mesmo seus, mas os sustenta assim mesmo, respondeu.

Foi então que o professor se deu conta da origem de todo o poder de Jorge Luiz. Com 30 filhos, 12 esposas, 12 sogras, algumas dúzias de cunhados, irmãos e primos, o bandido controlava toda a comunidade. Seus “parentes” exerciam o papel de cobradores do tráfico, exigindo as “contribuições” dos moradores e o avisavam quando da chegada da polícia ou de alguma facção inimiga na favela. Alvito, como historiador e antropólogo, saiu-se muito melhor do que todos os repórteres que, em vão, tentaram contar a história de Jorge Luiz, reproduzindo e disseminando ainda mais os mitos existentes em Acari.

Depois de contar essas e outras histórias salpicadas de humor e inteligência, ganhando assim o público, Alvito, entretanto, deixou o auditório da Funarte em maus lençóis. Isso por que, em uma resposta qualquer, declarou-se “não de esquerda, nem de direita, nem de centro, mas sim, um pesquisador”. Em meio a sindicalistas que, minutos antes ouviam o hino da Internacional Socialista, disse que “a esquerda mente tanto ou mais que a direita”, falou mal de Cuba e do regime castrista e ainda chamou Chávez de ditador, provocando burburinhos, pigarros e coçadas incessantes de cabeças na platéia. Ao ouvir suas palavras, uma integrante do corpo diplomático venezuelano levantou-se da poltrona e dirigiu-se até o microfone. Em espanhol mesmo, fez a defesa – apaixonada e igualmente brilhante, por sinal - de seu presidente, de seu regime e da democracia em seu país, terminando aplaudida por todos.

Foi o melhor momento do evento por ter gerado uma inesperada discussão de idéias e um debate entre dois pensamentos antagônicos, coisa que pouco se vê nos grandes veículos de comunicação ou mesmo se viu antes ou depois da palestra de Alvito, no decorrer do evento. Uma pena que o coordenador do NPC, Vitto Gianotti não permitiu a réplica do palestrante convidado, dando por encerrada a discussão nas palavras da consulesa. E, no cd-player, voltou a soar: “De pé, ó vitimas da fome /De pé, famélicos da terra/ Da idéia a chama já consome/ A crosta bruta que a soterra”...

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Breve meditação sobre um retrato de Che Guevara

Não importa que retrato. Qualquer um: sério, sorrindo, de arma em punho, com Fidel ou sem Fidel, discursando nas Nações Unidas, ou morto, com o dorso nu e olhos entreabertos, como se do outro lado da vida ainda quisesse acompanhar o rastro do mundo que teve de deixar, como se não se resignasse a ignorar para sempre os caminhos das infinitas crianças que estavam por nascer. Sobre cada uma dessas imagens poder-se-ia discorrer profusamente, de um modo lírico ou de um modo dramático, com a objetividade prosaica do historiador ou simplesmente como quem se dispôs a falar do amigo que percebe ter perdido porque o não chegou a conhecer.

Ao Portugal infeliz e amordaçado de Salazar e de Caetano chegou um dia o retrato clandestino de Ernesto Che Guevara, o mais célebre de todos, aquele feito com manchas fortes de negro e de vermelho, que se converteu em imagem universal dos sonhos revolucionários do mundo, promessa de vitórias a tal ponto fértéis que nunca poderiam se degenerar em rotinas nem em cepticismos, antes dariam lugar a outros muitos triunfos, o do bem sobre o mal, o do justo sobre o injusto, o da liberdade sobre a necessidade. Emoldurado ou fixo na parede por meios precários, esse retrato assistiu a debates políticos apaixonados na terra portuguesa, exaltou argumentos, atenuou desânimos, acalentou esperanças. Foi visto como um Cristo que tivesse descido da cruz para descrucificar a humanidade, como um ser dotado de poderes absolutos que fosse capaz de extrair de uma pedra a água com que se mataria toda a sede, e de transformar essa mesma água no vinho com que se beberia ao esplendor da vida. E tudo isto era certo porque o retrato de Che Guevara foi, aos olhos de milhões de pessoas, o retrato da dignidade suprema do ser humano.

Mas foi também usado como adorno incongruente em muitas casas da pequena e da média burguesia intelectual portuguesa, para cujos integrantes as ideologias políticas de afirmação socialista não passavam de um mero capricho conjuntural, forma supostamente arriscada de ocupar ócios mentais, frivolidade mundana que não pôde resistir ao primeiro choque da realidade, quando os fatos vieram exigir o cumprimento das palavras. Então, o retrato do Che Guevara, testemunha, primeiro, de tantos inflamados anúncios de compromisso e de ação futura, juiz, agora, do medo encoberto, da renúncia covarde ou da traição aberta, foi retirado das paredes, escondido, na melhor hipótese, no fundo de um armário, ou radicalmente destruído, como se fosse motivo de vergonha.

Uma das lições políticas mais instrutivas, nos tempos de hoje, seria saber o que pensam de si próprios esses milhares e milhares de homens e mulheres que em todo o mundo tiveram algum dia o retrato de Che Guevara na cabeceira da cama, ou na frente da mesa de trabalho, ou na sala onde recebiam os amigos, e que agora sorriem de terem acreditado ou fingido acreditar.

Alguns diriam que a vida mudou, que Che Guevara, ao perder sua guerra, nos fez perder a nossa, e portanto era inútil ficar a chorar, como uma criança, o leite derramado. Outros confessariam que se deixaram envolver por uma moda da época, a mesma que fez crescer barbas e alargar as melenas, como se a revolução fosse uma questão de cabeleireiro. Os mais honestos reconheceriam que lhes dói o coração, que sentem nele o movimento perpétuo de um remorso, como se a sua verdadeira vida tivesse suspendido o curso e agora lhes perguntasse, obsessivamente, aonde pensam ir sem ideais nem esperança, sem uma idéia de futuro que dê algum sentido ao presente.

Che Guevara, se tal se pode dizer, já existia antes de ter nascido. Che Guevara, se tal se pode afirmar, continuou a existir depois de ter morrido. Porque Che Guevara é só o outro nome do que há de mais justo e digno no espírito humano. O que tantas vezes vive adormecido dentro de nós. O que devemos acordar para conhecer e conhecer-nos, para acrescentar o passo humilde de cada um ao caminho de todos.


José Saramago

sábado, dezembro 09, 2006

Pão e circo


Mas as pessoas da sala de jantar são ocupadas em nascer e morrer...

Inocentes do Leblon

Os inocentes do Leblon
Não viram o navio entrar
Trouxe bailarinas?
Trouxe emigrantes?
Trouxe uma grama de rádio?
Os inocentes do Leblon, definitivamente inocentes, tudo ignoram, mas a areia é quente e há um óleo suave que eles passam nas costas, e esquecem.

CDA

sexta-feira, novembro 24, 2006

27 de novembro. E daí?


O dia 27 de novembro é lembrado em Cuba como o Dia do Luto Nacional. Foi neste mesmo dia do ano de 1871 que oito estudantes de Medicina, entre 16 e 21 anos, foram fuzilados a mando do General Blas Villate y de la Hera, ou Conde de Valmaseda. Segundo relatos da época, eles foram injustamente condenados por danificar o túmulo de um jornalista espanhol. Corria a Guerra dos Dez anos (1868-1878), em que os cubanos lutavam por sua independência do reino espanhol. Portanto, qualquer ato de rebeldia era imediata e duramente reprimido.

Alonso Álvarez de la Campa y Gambá, Anacleto Bermúdez y González de Piñera, José de Marcos y Medina, Ángel Laborde y Perera, Juan Pascual Rodríguez y Pérez, Carlos de la Torre y Madrigal, Eladio González y Toledo e Carlos Verdugo y Martinez foram presos pelo próprio governador da província de Havana em plena sala de aula e submetidos a um julgamento pra lá de tendencioso, sob as ordens do General Crespo, substituto de Valmaseda, que se encontrava na Espanha. Um grupo de voluntários espanhóis, amotinados em frente ao edifício onde ocorria o julgamento, protestou contra a condenação. Um novo julgamento então foi realizado, mas a condenação à pena capital foi mantida. De volta à Ilha, Valmaseda referendou o veredicto e, no dia 27 de novembro de 1871, os oito estudantes foram fuzilados.

Las Terrazas

Lago San Juan/Foto:www.lasterrazas.cu

O complexo turístico de Las Terrazas localiza-se a cerca de 50 km de Havana. Situado em Sierra del Rosário, o parque de cinco mil hectares foi declarado pela Unesco Reserva da Biosfera pela experiência bem-sucedida de desenvolvimento sustentável. O projeto teve início em 1968, quando se notou um processo de aterro do Lago San Juan e de desmatamento da região. Hoje vivem lá cerca de mil moradores que são capazes de preservar a região e conviver em harmonia com o meio ambiente sem intervir de maneira excessivamente predatória na natureza. A presença dos turistas também é controlada, porém constante. Os visitantes podem praticar caminhadas, passeios a cavalo e tomar banho nos lagos e cachoeiras da região. Mais informações através de (http://www.lasterrazas.cu/).

Quando estava em Cuba fui convidado por Soledad a visitar o parque. Conhecemos a casa memorial de Polo Montañes, espécie de cantor sertanejo cubano que morreu cedo e ainda hoje é cultuado no país. Lá vive seu irmão, que tenta vender alguns cds aos visitantes que param ali. Chegamos à margem do Lago San Juan, um local lindíssimo e realmente muito bem preservado, por sinal. Bem como as quedas d’água do rio de mesmo nome. As águas cristalinas permitem o mergulho e a prática da natação. Os restaurantes em Las Terrazas servem a típica e excelente culinária cubana.

Depois do almoço, sentamo-nos à beira do lago para falar amenidades. Alguns sentiam falta de seus países, outros se queixavam de seus cônjuges e outros mais, apenas escutavam. Hora, hora e meia depois, o grupo foi se dissipando, sobrando apenas Soledad e poucos amigos. Fabianne era uma belga de seus 50 e poucos anos. Contou que viajara a Cuba acompanhando o marido em uma viagem de negócios. Funcionário da cervejaria belgo-brasileira, Inbev, Gerard estava no país para representar a empresa que, em 1997, comprou as principais marcas de cerveja da Ilha: Cristal, Mayabe, Bucanero e Bucanero Malta, e ainda empurrou, literalmente goela abaixo dos cubanos, a alemã Beck’s. Fabianne contou ainda que, assim como Gerard, outros empresários estrangeiros estavam no país, preparando as bases capitalistas do que consideravam vir a ser um novo país após a morte do comandante-em-chefe.

Soledad também falou. Seu pai era um alto funcionário do governo cubano e vivia em uma confortável casa em uma cidade próxima de Sierra Escambray. Admitiu que ser membro do governo cubano o concedia alguns benefícios. Como o quê, perguntei. Comida boa e farta, por exemplo, respondeu. Não se pode deixar transparecer que se leva uma vida muito luxuosa. A discrição é uma qualidade imprescindível de um homem e a ostentação pode ser fatal a quem trabalha para Fidel. A cada cinco anos, mais ou menos, o comandante decide fazer um faxina no governo e manda algumas dúzias de políticos corruptos para o paredón, sem exceção nem mesmo para os amigos.

Os pais se divorciaram havia muitos anos. A mãe, dona Ivis, então se casou com outro homem com quem Soledad não se dava muito bem. Anti-castrista ferrenho, Miguel não gostava do envolvimento da enteada com política, muito menos com o governo. Até que certo dia, durante uma áspera discussão, Miguel proibiu Soledad de voltar à casa onde sua mãe morava. Dona Ivis ficou muito triste, mas resignou-se e recolheu-se à sua condição de esposa obediente. A tristeza de Soledad virou fúria e ela rogou aos céus que fizessem justiça a Miguel. Certo dia, ao cair da tarde, conta, fui até o jardim da minha casa. Orei profundamente e, olhando para o sol que se punha no céu avermelhado, pedi aos orixás que dessem àquele homem o tratamento que ele merecesse, qualquer que fosse ele, lembra. Dias depois, Miguel morreria em um acidente automobilístico.

Os anos se passaram e Soledad também perderia o marido em tragédia semelhante dentro de um carro. Desde então, vivia em uma casa simples no município de Cojimar, a cerca de uma hora de Havana. A mãe, a avó, duas irmãs e algumas sobrinhas viviam no andar de baixo. Soledad, o sobrinho Carlos, Salsicha e Cuquita, suas cachorras, no puxadinho construído no andar de cima. Todas as dificuldades a faziam querer sair do país, dar aulas em uma universidade espanhola, como já havia sido chamada.

Contei o caso de milhares de brasileiros que saem do país a cada ano rumo à América do Norte e Europa para tentar a sorte como pedreiros, garçons, faxineiros, lixeiros, marceneiros, mecânicos etc. No Brasil, ao contrário de Cuba, grande parte da população depende de um sistema de saúde deficiente que deixa idosos morrerem nas filas dos hospitais à espera de atendimento médico, não sabe ler ou consegue apenas assinar o próprio nome, vive problemas gravíssimos de segurança pública, fruto da extrema desigualdade social e habita em locais precários, como barracos erguidos em cima de morros ou às margens de rios sem condições mínimas de saneamento. O Brasil, assim como Cuba, é um país de mierda, constatou Soledad.

Fiquei com vontade de perguntar o que ela diria então de países como o vizinho caribenho Haiti, sem governo, mergulhado em uma guerra civil sem fim; a Índia, em que a maioria esmagadora de seu povo não tem o que comer, as vacas pastam sossegadamente pelos campos, mas é considerada uma potência emergente por seu suposto crescimento econômico; a Itália, que escolhe o neofascista Berlusconi como primeiro-ministro, ou os Estados Unidos que elege e reelege o acéfalo fundamentalista George W. Bush.

Mas, ao contrário, preferi convidar a todos para tomarmos uns mojitos e cubas libres à beira do Lago San Juan, onde enchemos a cara e nos refestelamos debaixo das primeiras estrelas que já despontavam no céu àquela hora.

terça-feira, novembro 14, 2006

Trinidad


Trinidad localiza-se na província de Sancti Spiritus, a sudoeste de Havana. Próximo dali fica Sierra Escambray, de onde Che Guevara comandou as tropas que desceram para tomar o poder nas proximidades (Fidel e Camilo Cienfuegos concentraram-se em Sierra Maestra, próximo a Santiago de Cuba). Cidade histórica, é possível percorrer a pé Trinidad em poucas horas, passando pela frente da praça, algumas igrejas, bares e um cemitério. A economia é basicamente sustentada pelo turismo, como todo o país. Por isso, os visitantes são sempre alvos de abordagens de pessoas pelas ruas. Um simples conselho para o almoço em um bom restaurante da região pode ser comprado por alguns pesos cubanos.

No centro histórico da cidade, as ruas são calçadas por paralelepípedos. Mas, saindo dali, chega-se a uma área rural, onde mesmo um Buick 59 é visto com curiosidade. Os homens jovens saem cedo para a labuta no roçado, as mulheres ficam a cuidar da casa, crianças vão estudar na escola mais próxima, enquanto os moradores mais idosos passam os dias em suas cadeiras de balanço.

Reza a lenda que certa feita passou por ali um turista, animal estranho naquelas paragens. Com óculos escuros, mochila nas costas e máquina fotográfica nas mãos, logo despertou a desconfiança dos locais. Enquanto os adultos o observavam de longe, as crianças se acercaram. Foram ver o que era aquilo. O mais atirado do grupinho de cinco puxou conversa. Perguntou de onde vinha aquele moço. O forasteiro respondeu e fez que ia sacar uma foto. Logo os meninos se enfileiraram. Fizeram pose para os flashes. Uma, duas, cinco, dez fotos. Era a novidade, o acontecimento do dia. Batia a foto e os meninos a viam automaticamente no view finder do equipamento.

O turista se cansou e foi saindo de fininho. Quando o menininho esperto o chamou de volta: un peso, cobrou. Surpreso, o moço ficou sem reação diante de tal atrevimento. Mas os meninos não arredaram pé. Acuado, então o visitante coçou o bolso, já vazio perto do fim da viagem, sacou algumas moedinhas e as distribuiu entre os pequenos negociantes, fazendo questão de dar a de menor valor ao mais atrevido e a mais valiosa ao mais tímido. A alegria das crianças era indisfarçável. Pareciam que haviam ganho o presente de natal, o ordenado do final do mês, ou, por que não, o cachê de uma sessão de fotos como modelos de um Sebastião Salgado. “Vou comprar um suco para mim”, gritou um deles, pulando e saindo em disparada.

Dia Internacional do Estudante

No dia 17 de novembro é comemorado, em muitos países, o Dia Internacional do Estudante. Foi neste dia do ano de 1939 que nove estudantes tchecoslovacos foram fuzilados pela polícia alemã (Gestapo), após 20 dias de manifestações contra a ocupação nazista no país. Os confrontos já haviam deixado uma vítima fatal, o estudante de medicina Jan Opletal, morto no dia 11 de novembro nas ruas de Praga. Seis dias depois, as tropas de Hitler agiram na calada da noite fechando universidades, repúblicas estudantis e invadindo a Sede da Federação Central de Estudantes Tchecoslovacos. Para pôr fim ao que chamou de “distúrbios e desobediência popular”, o führer ainda ordenou a deportação de mais de 1200 estudantes para os campos de concentração de Sachsenhausen-Oranienburg, próximo a Berlin. Detalhes em (www.une.org.br/home2/radar_estudantenet_jun_2005/m_1713.html)

Coincidência ou não, foi também em 17 de novembro de 1945 que Fidel Alejandro Castro Ruz ingressou no curso de Direito da Universidad de La Habana. Nascera 19 anos antes, filho de Ángel Castro, rico latifundiário espanhol com Lina Ruz, que trabalhava nas propriedades deste. Ángel era casado com Maria Luisa Argota, com quem teve dois filhos. A mulatinha de 14 anos chega à casa para trabalhar e logo encanta o espanhol com brejeirice e graça. Os dois iniciam uma relação extraconjugal que resulta no nascimento de Ângela, Ramon e Fidel. Com o nascimento do terceiro filho do marido com a serviçal, Maria Luisa sai de casa e entra com o pedido de divórcio litigioso na Justiça contra o ex-marido. Numa tentativa de livrar-se do flagrante, Ángel então envia Fidel a Santiago de Cuba com quatro anos de idade e, apenas aos 17, é reconhecido legalmente pelo pai.

Segundo relato de amigos, a rejeição sofrida pelo jeito rude e distante que o pai lhe dispensava, levou Fidel a querer destacar-se em todas as atividades que exercia. Seu porte avantajado o ajudou nos esportes, tornando-se campeão universitário em diversas modalidades. Já os inimigos, o acusam de ter herdado a megalomania e o autoritarismo de Ángel, fazendo buscar desde e para sempre o poder acima de tudo. Durante os anos como universitário, travou embates políticos dentro da instituição, quando fez parte da União Insurrecional Revolucionária e da Federação Estudantil Universitária, da qual aspirou ao cargo de líder, sendo derrotado nas urnas. Em sua formatura em 1950, Ángel não esteve presente. Nove anos mais tarde, conquistaria o poder através da revolução.

Por isso, até hoje, o dia 17 de novembro é comemorado em Cuba e Fidel é saudado por seu povo. Em 2005, voltou à Universidade onde fez um discurso de oito horas, transmitido ao vivo pelas emissoras para todo o país e reprisado repetidas vezes durante vários dias seguidos. Entre os assuntos, relembrava os tempos de estudante, o triunfo da revolução, destacava os êxitos de seu governo, atacava o imperialismo ianque e, por fim, anunciava novas medidas adotadas em diversas áreas da administração pública. O povo ouve atentamente seu comandante e repercute as notícias. Dono de um estilo próprio que inspirou outros líderes da América Latina, Fidel fala sem interlocutores, tendo todo o aparato do Estado e da imprensa a seu favor.

Por toda a universidade, as celebrações são muitas. Nas escadarias do acesso principal, estudantes levam faixas com mensagens de apoio, como a que repetia uma frase do comandante: Aqui me hice revolucionário. No jardim, onde seria montado o palco para o espetáculo musical da noite, uma enorme bandeira mostrava a face de outro ícone da revolução: Ernesto Guevara de la Serna, El Che. Nas classes para estrangeiros, os alunos aprendem a letra de Guantanamera, canção-símbolo do povo, escrita pelo herói nacional da independência cubana, José Martí em parceria com Joseíto Fernandéz. Em frente ao salão denominado Aula Magna, centenas de universitários – cubanos e estrangeiros – se espremem para esperar pela chegada de Fidel. Crianças do ensino primário são postadas na frente de onde deve parar a comitiva e ensaiam uma canção em sua homenagem. Os poucos estudantes escolhidos para assistir ao vivo o discurso são eleitos dentre as lideranças estudantis.

De repente, um cochicho toma conta dos presentes. Todos se entreolham e observam ansiosamente o portão de entrada da universidade. Apreensão, mãos suadas, quase trêmulas. Mesmo aqueles que não o admiram estão lá para ver se o homem é mesmo de carne e osso. Um carro desses da década de 50, com vidros fumes entra rápido portões adentro e freia quase em cima da multidão. Pelas portas traseiras, saem, um de cada lado, dois homens altos, carrancudos, ternos negros, metralhadoras nas mãos. Imediatamente, outro carro idêntico repete a mesma ação, quase batendo no pára-choques do primeiro. Ninguém sai. Como em um filme de ação estadunidense, um terceiro automóvel faz a mesma coreografia alguns segundos depois, saindo mais dois seguranças como clones dos homens do primeiro carro.

Os quatro leões de chácara voltam-se para as portas traseiras do segundo automóvel e de dentro dele sai Fidel. Vestido com sua inconfundível guaiabeira verde-oliva, coturnos negros, o comandante-em-chefe segue rumo à multidão. Suas feições nem de longe lembram a do guerrilheiro que desceu de Sierra Maestra rumo ao comando do país, onde se mantém há 47 anos resistindo ao bloqueio econômico, atos terroristas e tentativas de assassinato. A menos de cinco metros de Fidel, os estudantes podiam ver seu rosto envelhecido, os movimentos lentos, a expressão serena. Assistiu à apresentação das crianças, riu e brincou com elas. Depois entrou e proferiu seu pronunciamento de oito horas, sem se sentar e, por três ou quatro vezes apenas, tomar goles de água.

segunda-feira, novembro 06, 2006

El capitán

O salário mínimo em Cuba gira em torno de MN 250 (MN = moneda nacional, ou pesos cubanos) ou US$ 10. Professores universitários e médicos podem chegar a ganhar o dobro disso. Cada cidadão possui uma caderneta de alimentação onde constam alguns itens que podem ser comprados por preços subsidiados pelo govrno, como papel higiênico, sabão em pó, arroz e pouca coisa mais. Por isto, os cubanos buscam maneiras alternativas de ganhar algum dinheiro a mais para adquirir produtos que não estejam dentro do considerado “básico” pelo Estado. Nos últimos 15 anos o turismo cresceu muito em Cuba. Trabalhar formal ou informalmente com estrangeiros é uma das maneiras de se obter dólares ou, até mesmo, deixar o país a convite de um deles. Motoristas de táxi e camareiras de hotel, por exemplo, são profissões emergentes dentro desta nova lógica neo-socialista-cubana.

Por isso, muito profissionais “liberais”, como engenheiros, advogados, jornalistas acabam deixando seus ofícios para se dedicarem a atender os turistas que chegam ao país. Este também é o caso de ex-atletas profissionais que, ao abandonarem o desporto, passam a atuar no setor turístico. Tradicional formador de campeões em diversas modalidades, Cuba orgulha-se de promover desde a tenra idade a prática de esportes nas escolas. Além de um mecanismo de inclusão social e saúde, o êxito internacional de seus atletas não deixa de ser uma propaganda para o regime socialista. Um problema enfrentado pelas equipes de hoje em dia é o grande número de desportistas que migram para outros países, principalmente os Estados Unidos, seduzidos pelos altos salários pagos em dólares. Basta olhar a escalação de qualquer equipe que dispute a liga norte-americana de baseball para dar-se conta da esmagadora maioria de sobrenomes hispânicos. Como punição, esses atletas deixam de ser convocados a representar o país em competições internacionais.

O tradicional clube de jazz “La Zorra y El Cuervo” é parada obrigatória para os amantes do gênero que chegam a Havana. Localizada na Rua 23, ou mais conhecida como “La Rampa”, a casa costuma receber, diariamente, muitos turistas que pagam o equivalente a um mês de trabalho para um cubano comum. Muitos músicos consagrados do gênero no país tocam por lá, como o guitarrista Pablo Menéndez, o pianista Roberto Fonseca e o baterista Gilberto Valdés. Ao chegar ao local, o cliente é recebido na entrada e acompanhado até a sua mesa onde se acomoda para assistir ao show. Esta função é exercida pelo capitán, que é responsável por tudo que se passe no salão da casa noturna. Uma espécie de gerente da casa. Em La Zorra, el capitán atende pelo nome de Ricardo Vantes.

Negro, 1,90m de altura, bem articulado, simpático e muito bem vestido, hoje Vantes exerce uma atividade bastante diferente da que costumou praticar nos últimos 14 anos. Até 1998, ele era o oposto da equipe de vôlei que encantou o mundo naquela década e aterrorizou os brasileiros em pan-americanos e olimpíadas. Na final do Mundial de 90, Vantes, Joel Despagne, Diago, Hosvanis, Osualdo e Valdez derrotaram o Brasil por 3 sets a 2. Quando a partida estava 2 a 0 para os brasileiros, Vantes entrou em ação e ajudou seu time a virar o jogo e acabar com a nossa festa em pleno território verde-amarelo. “Aquele foi o jogo da minha vida”, declara.
Nascido em Camagüey, província a leste de Havana, o jogador mudou-se para a capital, quando ainda era juvenil. “É aqui que tudo acontece no voleibol cubano”, explica. Em 14 anos como atleta da seleção, conquistou, além do título em cima dos brasileiros, a Copa do Mundo de 90, disputada no Japão, a medalha de bronze no Mundial de 93 e o quarto lugar nas Olimpíadas de Atlanta, em 96. O ex-jogador se lembra muito bem da rivalidade existente entre as duas escolas latino-americanas. “Era como um choque de trens”. Mas Vantes guarda com saudades os velhos amigos brazucas. “Gostaria de reencontrar os jogadores da minha geração, como (Marcelo) Negrão, Tande e Kid. Dentro de quadra a disputa era acirrada, mas fora dela, a relação era ótima”, conta.

Depois que se aposentou como atleta, em 98, Vantes cursou Educação Física e depois Marketing. Chegou a exercer a função de manager da seleção feminina e também integrou a Comissão Nacional de Vôlei de Praia. Além das necessidades óbvias, o ex-atleta explica as outras razões da sua guinada profissional. “Gosto de conhecer um pouco de cada coisa e a música sempre me cativou”. Ele se considera realizado como ex-atleta e reconhecido em seu país, mas agora quer buscar novos desafios. “Quando era jogador, nunca pensei em trabalhar aqui, mas agora quero vencer também nesta área”, assegura.

Hoje, Vantes se mostra triste com a atual safra de jogadores cubanos. Para ele, a geração é mais alta, mas falta amor à camisa. “Antes, tínhamos mais desejo de ganhar e representar o nosso país. Atualmente, embora eles tenham mais condições, pensam mais em ganhar dinheiro e sair de Cuba”, lamenta. “Minha geração era mais patriota, se entregava mais ao vôlei”, analisa o ex-atleta que, ao se aposentar na seleção, também teve uma passagem pela Grécia em 96 após os Jogos Olímpicos. Mesmo assim, o “capitán” confia no futuro da equipe nacional. Ele se rende à atual supremacia do vôlei brasileiro e revela o interesse dos dirigentes cubanos em realizar um intercâmbio com os nossos treinadores. “O Brasil hoje é o melhor do mundo, tanto no masculino, quanto no feminino e precisamos desta troca de informações para voltarmos ao topo”, afirma.

sexta-feira, novembro 03, 2006

El viejo marinero griego

Na década de 60, a Guerra Fria estava em seu auge e Cuba era uma novidade no cenário político internacional. Os rapazes que desceram Sierra Maestra para derrubar Fulgêncio Batista entraram para a história como os últimos românticos de um tempo que estava por vir. Fidel subiu ao poder levando consigo o sonho de milhões de jovens que pensavam que, enfim, o mundo seria um lugar justo. Os uniformes guerrilheiros, as longas barbas, as boinas passaram a ser referência estética de toda uma geração. Era um jeito mais charmoso de ser comunista do que o estilo durão dos soviéticos. A morte prematura de Guevara o eternizou no ideário de todos como herói e serve até hoje como sustentação de um governo do qual já não mais fazia parte quando foi emboscado em terras bolivianas. Mas isso já é outra história.

O fato é que em 1964 o debate ideológico era muito intenso, fervoroso, apaixonado. Todos acreditavam que o mundo estava dividido em dois. Como num Flamengo x Vasco, comunistas e capitalistas acreditavam que seu time era o melhor e que o adversário merecia ser liquidado para o bem da humanidade. Comunistas de todo o mundo iam até Havana saber como vivia aquele povo e como andava a revolução. Athanasios chegou à capital cubana em março daquele ano em um navio de bandeira grega. Havia lido acerca do triunfo dos revolucionários e estava ansioso em pôr os pés na Ilha. No navio, entre um turno e outro de trabalho, lia o Manifesto Comunista, O Livro Vermelho, O Estado e a Revolução, entre outros.

Desembarcou no porto da cidade maravilhado. Logo foi conhecer as belezas da nova terra. Encantou-se com a beleza arquitetônica, o clima tropical e a amabilidade das pessoas. Aprendera algumas palavras de castelhano quando esteve na Espanha meses atrás. Procurava conversar com as pessoas, saber o que pensavam e o orgulho que sentiam por seus heróis. Parou em um bar para beber algo. Encontrou alguns companheiros de viagem e ficaram a rir e contar o que de novo haviam visto.

Subitamente, ouviu uma áspera discussão vinda da calçada. Um homem negro, alto e forte gritava palavras duras contra uma mulher que Athanasios não conseguia entender. Ela não se fazia de rogada e reagia, gritando de volta. Fazendo-se valer do seu tamanho, o homem desferiu-lhe um soco no olho esquerdo, que a fez tombar na hora. O grego era de um tempo, de um país e de uma família que não sabiam ver uma mulher apanhando e ficar quieto. O sangue subiu-lhe à cabeça e o jovem marinheiro foi até lá tomar satisfações. Não se lembrou que era menor que o agressor. Como um bólido, surgiu na frente homem, pegando-o de surpresa, e acertou-lhe o queixo, fazendo-o tombar. Montou em cima do brutamonte e continuou a bater até que a turma do deixa disso interviesse. Os amigos do agressor o tiraram de cena, deixando para Athanasios os louros da vitória, seguido dos aplausos de todos no bar.

Só então foi ver o que acontecera à moça. Já havia sido socorrida pela irmã e parecia passar bem. Chamava-se Mercedez. Tinha 22 anos e era atriz. Membro do Partido Comunista, possuía os mesmos ideais libertários de Athanasios e grande parte do povo cubano. O homem que a violentou era um antigo namorado ciumento e inconformado com o término do relacionamento. Apesar da ideologia comunista comum, o homem cubano não fugia do estereótipo do macho latino, orgulhoso de seu falo e possessivo com aquelas que consideravam “suas coisas”, entre essas, as mulheres.

Athanasios e Mercedez logo se encantaram um pelo outro. O ato de bravura de um jovem-marinheiro-grego-comunista fez lembrar o ideal romântico dos folhetins, que as jovens moças latinas liam àquela época. Nos livros, o príncipe chegava de um reino distante para libertar a donzela das garras do tirano e viviam felizes para sempre. A jovem-e-bela-atriz-comunista-que-se-rebelara-contra-o-seu-opressor também deixara o forasteiro fascinado. Depois de um mês, a tripulação do navio grego deixou o território caribenho. Athanasios e Mercedez se despediram sem a certeza de que voltariam a se encontrar algum dia. Passaram a se escrever freqüentemente e, em uma dessas cartas, Mercedez enviou uma foto de sua filha.

Quarenta anos depois, Athanasios voltou a Cuba, mas, desta vez como turista. Vivia em Montreal, Canadá, com mulher, filhos e netos. Chegara à capital e matriculara-se no curso de espanhol para estrangeiros da Universidad de Havana, na turma ministrada por Soledad. Torna-se um senhor calvo, mas mantivera a aparência jovial, forte, alto e comunicativo. Sempre procurava estar perto dos mais jovens, gostava de contar seus "causos" de juventude, entoar canções de seus tempos, bailar salsa, e conversar com desconhecidos pelas ruas.

Em uma das aulas, el viejo marinero griego contou o caso de Mercedez, como se conheceram e fez supor que gostaria de revê-la. Soledad então ligou para uma rádio da capital que transmitia um programa especializado em promover encontros inusitados. A professora passou as informações e deu o endereço de Mercedez que Athanasios – pasmem – ainda recordava 40 anos depois. Soledad pediu que a avisassem caso tivessem qualquer notícia.

Dias depois, uma mulher retornou a ligação. Maria se dizia filha de Mercedez e demonstrava muita contrariedade com a procura pela mãe. Soledad explicou-lhe o caso, disse que um velho amigo grego estava de volta à Havana e gostaria muito de rever a mãe da moça. Esta, por sua vez, não quis conversa, disse que Mercedez não queria saber de tal amigo e bateu o telefone com força pondo fim ao diálogo. Soledad contou o caso a Athanasios que se pôs inconsolável. Não entendia por que a moça queria impedir a mãe de encontrar um antigo amigo.

A tristeza, no entanto, não tirou o ânimo do velho marinheiro. Ele, que já vencera tantas vezes mares bravios, tempestades e até icebergs, não haveria de sucumbir logo agora, menos jovem, porém mais experiente. Contratou um motorista de táxi, que fazia ponto em frente ao hotel em que estava hospedado. Mandou que percorresse toda a Calle Infanta, rua onde Mercedez morava 40 anos atrás. Foram de prédio em prédio, de casa em casa, um pelo lado par, outro pelo ímpar. Perguntavam por Mercedez, mãe de Maria. Muitos não a conheciam, mas outros foram dando outras dicas de quem poderia ser aquela senhora. Estava com 62 anos e sua filha, 40. A mãe tornara-se professora primária e dava aulas de teatro para adolescentes. Vivia com três filhos, dois netos e o marido. Casara-se há 30 anos com Marcos, com quem tivera Guadalupe e Rafael. O destino do pai de Maria era desconhecido. Alguns diziam ter morrido, outros, ido embora para o estrangeiro. Mas Marcos a criara e ela o tinha como real progenitor.

Já passava das cinco da tarde, mais de sete horas de busca, quando Athanasios tocou no número indicado por vizinhos onde Mercedez moraria. Um senhor de seus 70 anos foi ver quem era. Marcos, que a esta altura já sabia da história contada por Maria, abriu a porta. Ao ouvir a voz de Athanasios, Mercedez se dirigiu até a porta. Maria, reticente, ficou um passo atrás da mãe com cara de poucos amigos. Ao se reverem, depois de 40 anos, os dois velhos amigos não conseguiram conter a emoção. As lágrimas rolaram face abaixo de ambos e o abraço apertado durou alguns minutos sem que ninguém no recinto dissesse uma só palavra. Depois, o velho marinheiro cativou a todos com seu carisma. Conversaram e riram muito. Athanasios brincou com os netos de Mercedez, aconselhou-se com Marcos, relembrou os bons tempos com a amiga, contou piadas aos mais jovens e Maria chegou até a sorrir.

No dia seguinte, voltou convidado para o almoço. O grego levou presentes a toda a família que retribuiu com fotos e lembranças do país. Depois, trocou endereços de correspondência e despediu-se de todos antes de partir. Três meses após o regresso àquela que um dia fora a terra dos sonhos de um jovem marinheiro, Athanasios deixou Havana de volta ao Canadá. Sentia que pagara sua dívida com o passado. Sua missão estava cumprida e, enfim, poderia morrer em paz.

quarta-feira, novembro 01, 2006

Jineteros



Os jineteros são presenças constantes nas ruas de Havana. Ao cair da noite ou mesmo à luz do dia não é difícil identificá-los. Cabelos crespos e barba bem aparados, bigode fino bem rente ao lábio superior, camisetas sem manga deixando à mostra os músculos bem torneados do braço e calça de nylon justa evidenciando os glúteos. O estereótipo do homem cubano que toda mulher estrangeira sonha viver um tórrido romance marginal, como nos filmes estadunidenses.

A abordagem não é menos conhecida. Pelas ruas, nos bares, nas saídas de concertos musicais, teatros ou hotéis, lá estão eles. Aproximam-se muito simpáticos perguntando “de que país eres” e se “no le gustaria conocer mejor la ciudad”. Uma característica típica é a insistência. Não desistem na primeira recusa. Seduzem a vítima falando da beleza dos monumentos de Havana Vieja, das Playas del Leste e dos drinques da Bodeguita del Médio, onde Hemingway tomava das suas. Encantados e ávidos por conhecer as maravilhas pelas quais já ouviram falaram nos quatro cantos do mundo, os desavisados turistas acabam topando.

Porém, há outras formas de aproximação. Muitos estrangeiros procuram a Universidade para cursos de línguas, dança, entre outros. Dentro da própria instituição há uma agência de turismo que facilita o ingresso dos de fora, mesmo que não tenham o visto de estudante - oficialmente, condição para se estudar no país. Por isso, muitos jineteros se infiltram dentro da própria Universidade e, disfarçados de professores, passam a abordar turistas.

Outra maneira são as aulas de dança cubana espalhadas por todo o país. Salsa, rumba, merengue e suas variações. Encantadas pelo rebolado latino envolvente, as lourinhas de olhos claros da Suécia, Bélgica, Áustria, Alemanha e Canadá matriculam-se em um desses cursos para aprender aquela arte tão caliente. Com o corpo colado e as mãos do professor em torno da cintura, ouvem ao pé do ouvido o sussurrar das instruções no sensual idioma espanhol. Faça uma pesquisa: pergunte a qualquer mulher estrangeira que já tenha visitado Cuba se não teve um namorado, ou um caso sequer com um rapaz da Ilha. Claro que toda generalização é perigosa, mas hoje em dia, um casamento com uma estrangeira é a maneira mais fácil de deixar o país, desejo cada vez maior entre os cubanos desde a década de 90. As autoridades combatem duramente a ação dos aproveitadores, porém não fazem nenhuma campanha aberta para não afugentar os visitantes.

* * * * *

Karen nasceu na Áustria há 37 anos. O casamento com Walter não ia lá muito bem e por isso decidira passar um mês de férias com a irmã Kathlen e conhecer as maravilhas do Caribe. Inscreveu-se no curso de espanhol para estrangeiros e matriculou-se em uma turma de iniciantes de salsa. Lá conheceu Roberto, o professor. Karen, apesar de já ter passado do esplendor da forma física, ainda tinha os seus encantos. Mantinha o corpo saudável com boa alimentação, natação e ginástica toda manhã. O abdome definido e as pernas bem torneadas causavam inveja a qualquer garotinha de 20 e poucos anos.

Chegou à turma sem conhecer lhufas do bailado latino. O que sabia sobre dança era o exemplar nórdico-germânico de cintura dura e feições congeladas. A irmã a acompanhara nas primeiras vezes, mas desistira pouco tempo depois. Considerou aquele tipo de representação artística quase um ritual do acasalamento. Karen, porém, continuou a freqüentar as aulas. Por sua dedicação especial, Roberto a tomara como par mais constante nas demonstrações de novos passos.

Certa feita, ficou depois do horário para aprimorar um movimento do qual ainda não estava muito segura. O professor dispensou os demais funcionários da Academia de danza para que a ensinasse com mais esmero. Não queria que a moça se sentisse constrangida. A intimidade da pareja era cada vez maior. O bailado dos dois corpos era tão sincrônico que pareciam apenas um. Não era possível saber onde terminavam os movimentos de um e onde começavam os do outro. Até que uma hora a harmonia ficou tão perfeita que Roberto e Karen chegaram ao êxtase simultaneamente.

A irmã Kathlen achava muito estranha tal dedicação. O dia de voltar para casa se aproximava e Karen não parecia tão entusiasmada assim em retornar à terra natal. Depois de alguma insistência da irmã, Karen acabou confessando que estava envolvida por Roberto. Contou sobre o dia na Academia, do bailado sensual do professor, de sua atenção especial à aluna, algo que há anos não recebia do próprio marido. Kathlen quedou-se paralisada com a história e se perguntou como demorara tanto tempo para perceber. Sentiu-se culpada por ter consentido que a irmã continuasse a freqüentar as aulas. No dia da partida, Kathlen foi. Karen ficou.

O romance entre Karen e Roberto tornava-se cada vez mais evidente. Alguns alunos da academia chegavam a comentar, embora ninguém tivesse provas. Após as aulas, Karen saía na frente e esperava Roberto na esquina da casa dele para que ninguém desconfiasse. A austríaca estava cada vez mais apaixonada. Tornara-se também ciumenta. Demonstrava muita contrariedade quando uma nova aluna chegava e Roberto lhe dedicava atenção. Passou a desconfiar quando, algumas vezes, o professor não ia mais com tanta freqüência ao seu encontro.

Até que, certo dia, Karen o seguiu até sua casa sem que Roberto percebesse. Notou a presença de uma jovem atrás de uma das colunas do prédio. Achou tratar-se de uma das novas alunas da turma, mas não teve certeza. Roberto entrou no prédio. Pouco tempo depois, a mulher entrou também. Karen foi embora num misto de fúria, depressão e pânico. Sozinha em um país estranho, sem falar fluentemente espanhol, ficou sem rumo.

Desapareceu das aulas. Ficou dias a andar pela cidade, sem conversar com ninguém, com desejo de voltar à Áustria. Em vez disso, voltou a freqüentar as aulas de espanhol. Decidira permanecer por mais tempo em solo caribenho pensando que o que a esperava na Europa não era tão melhor assim. Reingressou na turma de Soledad e lá fez novos amigos. Todo início de mês uma nova turma começava. Desta vez, alguns canadenses, franceses, italianos e até coreanos. Divertiu-se com as atividades multidisciplinares da professora e até se esqueceu de Roberto por alguns dias. Saiu, bebeu, deu risadas e até dançou com novos pares.

Um desses pares era Andrew. Um canadense 15 anos mais novo que ela. Fã dos ideais de Che Guevara, fora a Cuba conhecer o país onde todas as utopias de um mundo sem saída ainda permaneciam vivas. Ao menos nos longos discursos de Fidel, nos monumentos aos heróis da pátria e nos outdoors espelhados pelas ruas onde se lêem Vamos bien. Andrew era um fã da música cubana e dos filmes de Almodóvar. Por isso, mesmo nunca tendo estudado espanhol antes na sua vida, ingressara no nível intermediário, em que Karen também estudava.

Em um final de semana, a turma decidiu se reunir em frente ao Malecón, espécie de calçadão da orla de Havana, para tocar umas modas havaneras e tomar alguns mojitos. Karen ainda estava um pouco entristecida, porém disposta a esquecer Roberto. Papo vai, papo vem, todos na roda contaram um pouco das suas vidas em seus países. Andrew estava prestes a se casar com Jeniffer quando voltasse. Disse ainda que a moça esperava um filho seu e que estava muito feliz por isso. Fizera aquela viagem com o pretexto de aprender uma língua, mas na verdade, encarava como sua despedida de solteiro.

Karen também contou sobre seu caso com o cubano e seus olhos chegaram a ficar marejados com as recordações. Mas antes que o clima de velório se instalasse, uma música alegre começou a tocar:

A las cinco de la mañana

caiendo me voy caiendo

con una botella´e ron

mi mujer me abandonó

Andrew puxou Karen pelo braço e ambos começaram a dançar. Nenhum dos dois estava lá muito sóbrio e os passos mal sincronizados. Mas nem assim, queriam parar. Riam-se muito, comentavam coisas engraçadas um no ouvido do outro em espanhol, inglês, francês, alemão, não importava. O sol começava a nascer quando Karen se viu entrando no quarto do hotel de Andrew, tirando a roupa e fazendo amor. De tão ébrio, o jovem caiu no sono pesado logo depois de consumado o ato, deixando Karen ainda mais deprimida. Mas, pelos menos, Andrew não escondera sua vida. Contara toda a verdade antes e ela também. Achou graça, gargalhou e sentiu-se, de certa forma, vingada. Melhor assim para os dois, pensou. Bateu a porta, foi-se embora e os dois nunca mais se viram.

Dias depois, caminhando por uma rua do bairro de Vedado, deu de cara com Roberto. O professor a perguntou onde esteve nesse tempo todo, disse-lhe que sentia muita saudade e marcou um encontro. Karen não falou nada. Que o tinha visto com outra mulher, como se sentira depois disso, que pensara em voltar à Áustria, nem se iria encontrá-lo de novo. Foi embora pelo lado oposto de onde Roberto saíra. Mas, no dia e hora marcados estava lá. Desta vez era ela de novo quem se escondia atrás da pilastra. Pouco depois de o professor entrar no prédio, Karen também entrou. Subiu no apartamento, entrou no quarto, não disseram uma só palavra. Karen entregou-se novamente à antiga paixão e os dois fizeram amor como se não o fizessem há anos, tal o frenesi causado pelo contato entre os dois.

Como que evitando se falarem, só após algumas horas foram trocar palavras. Roberto não explicou como, mas soubera da noite em que Karen saíra com outro homem. Quis saber quem era e jurou matá-lo caso ela o visse de novo. Sem responder, a mulher deu o troco falando do dia em que o vira com a mulher na entrada de seu prédio. Ele então contou que se tratava de uma antiga namorada belga que voltara de seu país para visitá-lo. Os dois estavam planejando deixar o país e viver na Europa o mais breve possível. Karen ficou desnorteada e ameaçou se matar. Chorou copiosamente, mas Roberto não deu muitas outras explicações.

Karen deixou a casa de Roberto rumo ao hotel. Depois de seis meses de uma aventura caribenha, decidira finalmente, que era hora de voltar para casa. Concluiu que a partir de então enfrentaria os seus problemas de frente. Dar fim ao casamento fracassado, retomar os estudos e procurar um novo emprego. Formara-se em Música, mas o marido a convencera que deveria ficar em casa e por isso desistira da vida profissional por 15 anos. Arrumou as malas e tomou o primeiro vôo com destino a Viena. No táxi a caminho do aeroporto, pensara nos seis meses em que permanecera em Cuba. Sentiu-se uma nova mulher com um grande futuro e muita vontade de recomeçar. Devia aquilo a Roberto, Andrew, Soledad e a Fidel.

La guagua

Para ir da Universidade à casa de Soledad era preciso esperar la guagua (la uaua, como dizem), nada menos que o transporte coletivo dos habitantes de Havana, cuja passagem custa MN 0,40. Outra opção é ir de camelo (MN 0,10), um ônibus de design muito ultrapassado, importado da antiga União Soviética, espécie de Lada de 48 lugares com duas corcovas no teto do veículo.

Viajar de guagua é uma aventura inesquecível para qualquer estrangeiro que vá a Havana. Além do cuidado com os bolsos traseiros, o aperto no interior do veículo, há que se esperar para embarcar. E como. Uma espera de uma hora, uma hora e meia é lucro. Soledad contava que saía de casa às 4h30 para estar na Universidade às 8h. Não levava a sério até ser convidado a ir a Cojimar. Cheguei ao ponto de ônibus às 10h da manhã e cheguei a sua casa às 15h. Descontando a hora de duração da viagem, calculo que esperei no ponto por quatro horas.

Mas em Havana tudo é surpreendente. Foi justamente neste dia que conheci uma pessoa que marcou minha estada na cidade e no modo como passei a ver o povo cubano. Sentado no ponto, puxei conversa com uma moça. Maria estava grávida de oito meses. Enfermeira desempregada levava nas mãos uma pasta. Era para o marido, um arquiteto igualmente sem trabalho. Estivera em Vedado, bairro central da capital, para buscar com amigos uma pasta na qual o esposo organizaria seu portfólio e buscaria emprego a partir de então.

Apesar do panorama absolutamente desfavorável, a criança que carregava no ventre fazia Maria acreditar demais na felicidade de seu casamento, seus planos futuros e sua felicidade. Jamais maldisse a sorte. Apenas demonstrou desejo de buscar emprego em outro país, onde acreditava poder exercer o seu ofício e garantir o sustento do rebento. Jamais entretanto, desprezou seu país, sua pátria, seu povo, seu comandante-em-chefe. Quando perguntei se acreditava que o país estaria melhor sem Fidel, limitou-se a dizer, “não posso responder esta pergunta”. Sem entretanto deixar claro se por censura ou por desconhecer o dia de amanhã.

Talvez pela esperança de melhores dias em uma nova terra, tenha escrito seu endereço em meu caderno de anotações. Mas não creio que o que vou relatar a seguir tenha sido fruto de interesse oportunista. Depois de quatro horas de espera e muita conversa, finalmente la guagua chegou. Dispensando a gratuidade que seu estado interessante lhe garantia, Maria solidariamente pagou a passagem.

Embarcamos no veículo buscando espaço entre os passageiros que lá dentro já se encontravam. Polidamente, um deles cedeu o lugar para que Maria se sentasse. Esperei em pé ao seu lado. Avisou que deveríamos descer próximo à Rodoviária, onde o ônibus faria o ponto final, para aí então tomar o próximo coletivo. Disse que, tudo bem, mas que ela não precisava fazer o mesmo, pois gozava deste privilégio.

Maria ignorou-me, correu em desabalada carreira os cerca de 300 metros com sua protuberante barriga sob o sol da meia estação cubana e ainda me apressava aos gritos de apurate, apurate. Ao alcançarmos o ponto de ônibus onde eu deveria embarcar, ainda acotovelou-se com os demais passageiros, que não lhe garantiam uma entrada tranqüila no veículo, e ainda resistiu que pagasse a sua passagem, o que, obviamente, fiz questão de fazer.

Tal atitude deixou perplexo o brasileiro nascido e criado no país do "salve-se quem puder", do "jeitinho" e dividido entre malandros e otários. Não sei se o maior ato de generosidade que jamais vi na vida pode ser considerado normal em um país em que nadie tiene nada, segundo palavras da própria Maria, e por isso um gesto de doação, mesmo em benefício a um estranho é visto como “nada mais que obrigação” para um povo que aprendeu a ser solidário.

O fato é simplesmente que fiquei deveras constrangido e sem reação para responder a tamanha gentileza. Tanto que, descemos juntos, mas nos separamos algumas ruas depois. A moça entrou por uma rua de terra batida e sumiu por entre as vielas de Cojimar. Com a agenda atribulada, não pude visitá-la, nem sequer levar uma reles lembrança para a criança que viria ao mundo. Nunca mais a vi e jamais pude retribuir o carinho que Maria teve comigo. Hoje, repleto de remorso, encontro consolo em minhas preces, nas quais rogo para que tudo dê certo para ela, seu marido e seu filho.

quarta-feira, outubro 25, 2006

Cuba

Na foto com o Capitólio ao fundo: Avenida Brasil,
Havana Vieja, Havana, Cuba

Vamos chamá-la Soledad. Professora de Espanhol para estrangeiros da Universidade de Havana, tem como método didático levar os alunos a conhecer mais do que a sala de aula. Além de lições acerca da sintaxe da língua de Cervantes, Soledad inicia os incautos estrangeiros nos costumes do povo caribenho. Ao final de duas, três ou quatro semanas, os turistas vão-se de Cuba sabendo também por que o Tocoro é o pássaro-símbolo do país, a Palma Real, a árvore que representa os cubanos e o que significam a estrela e as cores na bandeira nacional.

A professora estimula-os ainda a pesquisar nas diversas bibliotecas públicas espelhadas por Havana a origem da música cubana, a forma como são confeccionados os charutos Cohiba e a obra dos heróis nacionais como José Martí, Che Guevara e Camilo Cienfuegos. As aulas de Soledad incluem ainda visitas guiadas a templos de Santeria e ao Museo do Ron, com direito a dose para degustação.

Para um jornalista entrar em Cuba, o melhor é com o visto de turista. Brasileiros costumam se identificar com a cultura do povo hospitaleiro, festeiro e solidário. É verdade que muitas vezes é preciso desvencilhar-se de um ou outro aproveitador que pede dinheiro, oferece charutos, bebidas ou uma chica pelas ruas. São os chamados jineteros, uma versão caribenha dos malandros da Lapa de meio século atrás. Este fenômeno apareceu na década de 90 e só vem crescendo ao longo dos anos com a chegada cada vez maior dos turistas ao país. As autoridades tentam combatê-lo como podem, evitando que estrangeiros andem com nativos pelas ruas. Quando isto acontece, logo a polícia intervém. Pode chegar a US$ 100 a multa aplicada ao dono da casa se um cubano não-residente for encontrado em um local que receba turistas.

Mas Soledad, como professora universitária, tem permissão para acompanhar seus alunos onde quiser. E assim, ela vai com o grupo à Igreja de Regla - nome da Santa que representa Yemanjá no catolicismo em Cuba – ao já mencionado Museo do Ron, ao Estádio Olímpico de Havana, onde foram realizados os Jogos Pan-Americanos de 1991, ao Parque Ecológico de Las Terrazas, localizado em uma província próxima de Havana, e até ensina a preparar mojitos e a bailar salsa.
Fora da sala de aula, Soledad exerce outra atividade. Preside um dos CDRs (Comitê de Defensa de la Revolución) de Cojimar, município próximo a Havana. Sua função é observar o que acontece à volta de sua casa e avisar a membros de escalões superiores do governo, caso algo possa “ameaçar a Revolução”. No passado, Soledad esteve também em Angola integrando as tropas cubanas enviadas a defender o regime socialista no país africano.

Los Cinco

Mais recentemente, criou o Comitê de Solidariedade aos Cinco Heróis Cubanos da Universidade de Havana. “Los cinco heroes cubanos”, como são conhecidos por toda Cuba e na maior parte de Miami, são os agentes do governo cubano infiltrados René Gonzalez, Gerardo Hernandez, Ramón Labanino, Fernando Gonzalez e Antonio Guerrero, presos nos Estados Unidos desde 1998 acusados de espionagem. O assunto veio à tona quando um aluno norte-americano perguntou a respeito do caso em uma das aulas. Soledad incentivou os estudantes a pesquisar sobre o tema. No dia seguinte, não apenas os alunos voltaram com as informações acerca do caso, como haviam conseguido também o endereço de correspondência das prisões onde os cinco se encontravam. A partir daí, deu-se início a uma série de cartas trocadas entre a professora e os cinco heróis.

Antonio, Gerardo, Ramón, Fernando e René cumpriam missão pelo governo cubano quando foram presos. Dois deles foram condenados à prisão perpétua, os outros a penas que vão de 25 a 30 anos de reclusão. O governo norte-americano nega o visto às suas famílias para que possam visitá-los. Advogados de defesa conseguiram na Justiça de Atlanta a anulação do julgamento, baseado na falta de provas para a condenação, mas até hoje (outubro de 2006) eles não foram libertados. "O que caracteriza um caso de seqüestro", acusa Soledad. O caso completou oito anos no dia 6 de outubro e coincide com a data de aniversário do atentado contra civis em Barbados, tramado pelo maior financiador do terrorismo em Cuba, Luis Posada Carriles. (Em 1976, quando um avião da Cubana Aviación com 73 passageiros explodiu em pleno ar. Mais infos: www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=24748.

Os cinco estavam nos EUA para investigar a ação de grupos terroristas que desde o triunfo da Revolução Socialista na Ilha, em 1959, atuam em Cuba. Com a ascensão ao poder do comandante-em-chefe Fidel Castro, os milionários cubanos deixaram o país rumo a Miami, fugindo do confisco dos bens pelo Estado. Desde então, cubanos dissidentes e outros latinos contrários ao governo castrista, promovem atentados com o intuito de desestabilizar o regime socialista. Os financiadores desses atos são conhecidos, como os descendentes da Família Bacardi, famosa marca de rum em todo o mundo, mas que – obviamente – não é consumida em Cuba, Luis Posada Carriles e o também terrorista Orlando Bosch. Carriles, inclusive, está sendo alvo de uma disputa entre os governos cubano e estadunidense. Enquanto Fidel pede a sua extradição para a Venezuela, Bush insiste a dar-lhe guarida.

Carriles chegou a ser preso no Panamá após planejar um atentado para assassinar Fidel quando o comandante visitava aquele país. O terrorista e outros dois comparsas foram presos, porém a presidente panamenha Mirella Moscoso concedeu-lhes perdão e permitiu que os três se evadissem para os EUA. O desarme desta operação só foi possível graças ao trabalho de agentes servidores do governo cubano, entre eles, los cinco. Porém, em 1998, uma série de explosões simultâneas em hotéis, restaurantes – como a famosa Bodeguita del Médio - e pontos turísticos, resultou na morte de um italiano. A imprensa internacional divulgou o episódio como de autoria de cubanos insatisfeitos com o governo, dando a entender que o país vivia um clima de guerra civil.

O Comitê de Solidariedade, do qual a acadêmica faz parte, tem representantes em todo o mundo. "O trabalho consiste em divulgar a injustiça que esses cinco heróis vêm sofrendo durante esses sete anos", esclarece. "Enviamos e-mails para todas as partes do mundo e, hoje, já temos representantes na Inglaterra, Canadá, EUA, Alemanha, entre outros, onde são organizadas manifestações em favor da liberdade deles", acrescenta. "O Mais importante é que o mundo inteiro se mobilize", finaliza. Entre aqueles que já assinaram menções de repúdio à prisão dos cinco cubanos estão ninguém menos do que o professor e autor norte-americano Noam Chomsky, a vencedora do Prêmio Nobel da Paz de da Paz de 1992, a guatemalteca Rigoberta Menchu, a escritora sul-africana, Nadine Gordimer, e o bispo da Arquidiocese de Detroit, Thomas J. Gumbleton. Soledad relata dois casos em que foi abordada nas ruas de Madrid, quando lecionava na Espanha, por membros do comitê espanhol. "O governo de Cuba tem simpatizantes por toda a parte e não são apenas cubanos", revela. (Mais informações no site http://www.antiterroristas.cu/ ).

Roberto Carlos e Nelson Ned

Mas, como todos os cubanos, a professora também sofre com os problemas financeiros que o país atravessa. Depois da queda da União Soviética, Cuba passou a viver quase que prioritariamente do turismo como sua principal atividade econômica. E, o que sustenta o país, pode acabar destruindo a mentalidade socialista do povo que desde a tenra idade aprende a adorar seus heróis. A chegada em massa de estrangeiros repletos de dólares, roupas e acessórios importados motiva a cobiça dos cubanos. Os nativos da Ilha possuem um alto grau de escolaridade e um dos sistemas de saúde mais eficientes do mundo, mas também vivem privações. Entre elas, a falta de alguns alimentos que só podem ser comprados através do peso conversível, uma moeda equivalente a um dólar e a 24 pesos cubanos.

O momento que o país atravessa é o reflexo 30 anos de uma política de dependência à União Soviética, em que os latinos exportavam suas matérias-primas e importavam produtos industrializados, numa típica relação metrópole-colônia. "Fidel apostou que o socialismo venceria o capitalismo e, a partir dos anos 90, entraríamos numa nova fase, com o desenvolvimento de nossa indústria e aquecimento econômico", analisa Soledad. "Mas quando Gorbachev, no final dos anos 80, começou a visitar Washington, começamos a prever o pior", continua. O bloqueio econômico estadunidense é, para ela, a principal causa dos problemas enfrentados naquele país. "Hoje em dia não temos nenhuma ajuda dos organismos internacionais, que são regidos pelos ianques, e nossos parceiros econômicos também são restritos".

Soledad vive em uma casa modesta, como a grande maioria dos cubanos. Um débil alambrado separa o terreno da rua de terra. Na entrada, podemos ver a placa que indica um dos CDRs de Cojimar. No andar de baixo, vivem a mãe, a avó, irmãs e sobrinhas da professora. Difícil encontrar uma casa em Cuba, por menos que seja, onde vivam menos do que cinco pessoas. Subindo pelo lado direito, tem-se acesso a uma escada de degraus estreitos, por onde se chega à casa de Soledad. Todos são recebidos pelos ganidos de Salsicha e Cuquita, suas cadelas de estimação.
Lá vive também um rapaz, a quem chamaremos Carlos e a quem a professora denomina seu sobrinho. O bigode fininho, o cabelo engomado e as roupas justas para evidenciar o porte delgado não deixam dúvidas de que encontramos um típico cubano. Soledad conta que Carlos sofre de problemas emocionais, mas não revela quais. Numa breve conversa, o rapaz queixa-se da situação econômica em que o país se encontra, das condições de moradia e das dificuldades para se comprar alimentos afora os itens de primeira necessidade. Ele abre a caderneta de alimentação que recebe do governo e mostra alguns produtos que se podem comprar a preços subsidiados. Uma barra de sabão, um rolo de papel higiênico, arroz e pouca coisa mais. O salário mínimo não passa de MN 250, cerca de U$S 10. Um professor universitário ou um médico podem ganhar, talvez, o dobro disso.

Todos em Cuba amam o Brasil. Sabem também das dificuldades que enfrentamos aqui e talvez, por isso, se identifiquem com o nosso povo. Durante as tardes, assistem às novelas brasileiras. Uma das que fez mais sucesso por lá foi Esplendor. Paravam tudo o que estavam fazendo e postavam-se em frente à televisão. Depois vinham perguntar a nós o que passaria nos próximos capítulos. “É verdade que esta atriz é lésbica?”, queriam saber.

Carlos também contou que gostava de dançar. “Soy romântico”, revelou. “E as mulheres jovens hoje em dia não dão valor a isso”, queixou-se. Parecia sofrer por amor. Mudei de assunto e perguntei-lhe se conhecia o Brasil e do que mais gostava em nosso país. “La musica”, respondeu. “E qual o seu cantor brasileiro favorito”, quis saber. “Todas de Roberto Carlos e Nelson Ned”.

sexta-feira, outubro 20, 2006

Você só.. mente...

Não espero mais você, pois você não aparece
Creio que você se esquece das promessas que me faz
E depois vem dar desculpas, inocentes e banais
É porque você bem sabe
Que em você desculpo
Muitas coisas mais
O que sei somente
É que você é um ente
Que mente inconscientemente
Mas finalmente
Não sei porque
Eu gosto imensamente
De você Invariavelmente, sem ter o menor motivo
Em um tom de voz altivo
Você quando fala mente
Mesmo involuntariamente, faço cara de inocente
Pois sua maior mentira, é dizer à gente que você não mente.

Noel Rosa

sábado, outubro 14, 2006

Acaso


"Sem acaso não há existência. O acaso é liberdade em relação às leis da lógica, porém é também a condição de necessidade devido à qual se enfrentam a cada momento, na vida, situações imprevistas. A salvação não reside na razão que faz projetos, mas na capacidade de viver com lucidez a casualidade dos acontecimentos. Tudo se resume a encontrar o ritmo próprio e não perdê-lo, aconteça o que acontecer". Do historiador italiano Giulio Carlo Argan sobre a obra do artista plástico norte-americano Jackson Pollock. Na foto, Number 8 (1949), de Pollock.

Fora da Ordem

"Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem. Apenas sei de diversas harmonias possíveis sem juízo final". Caetano Veloso

sexta-feira, outubro 13, 2006

Velho Safado


"tenho visto intelectuais demais ultimamente. me canso fácil dos preciosos intelectos que precisam cuspir diamantes toda vez que abrem as suas bocas. eu me canso de ficar batalhando por cada espaço de ar para o espírito. é por isso que me afasto das pessoas por tanto tempo, e agora que estou encontrando as pessoas, descubro que preciso voltar pra minha caverna. existem outras coisas além da mente: há insetos e palmeiras e trituradores de pimenta, e eu vou ter um triturador de pimenta na minha caverna, portanto riam." Charles Bukowski

Mova-se!

Foda-se a pusilanimidade dos moderados. Fodam-se os acéfalos verborrágicos! Fodam-se os puxa-sacos e os alcagüetes. Assuma uma posição e depois mude-a... Tenha uma idéia e depois destenha... Seja homem e assine embaixo do que escreveu... Depois rasgue! Cague e depois limpe! Faça, desfaça e refaça! Discuta! Debata! Beije, abrace, experimente... Encha até o talo!Encha o saco! Não evite. Prove. Mova-se! Mude-se! Escreva. Apague. Chupe até o caroço. Leia, releia, releia... Troque opiniões. Mude de idéias. Troque salivas. Misture os suores. Troque suas células mortas pelas células mortas de outro... Suje sua roupa branca com a nódoa marrom da lama da vida! Olhe para trás, mas siga em frente... Sempre!

Discorde!

Viva a pluralidade. Foda-se o pensamento único e o maniqueísmo.Viva Caetano Veloso, Gerald Thomaz, Lobão, Diogo Mainard e Osama Bin Laden.Expresse a sua opinião sem auto-censuras. O preconceito é o pior dos males. Assuma-os e livre-se deles, portanto!Seja livre para discordar de quem quiser, até de si mesmo...Mate o seu pai, seu patrão, seu pastor, seu professor, seu analista, seu presidente...Mate você mesmo e dê à luz um outro você.Misture tudo e faça uma coisa nova!Não repita o que já ouviu!Ouça tudo, mas não repita nada!Crie algo diferente, porra!Minta, se quiser, para quem quiser, mas nunca para si mesmo...Não chegue a conclusão alguma!Cultive todas as suas dúvidas e semeie-as nos outros!Apaixone-se!Envolva-se!Empreenda!Faça!Reproduza-se!Aprecie o diferente!Não o descarte só porque ele não é “igual” a você...Olhe ao seu redor, em cima, embaixo, de um lado, do outro...Descubra outros lugares, novas possibilidades!Ame!Odeie!Mas acima de tudo, discorde!Discorde mesmo desse texto (,) babaca!Mas com todo respeito, é claro...