sexta-feira, julho 16, 2010

Brasil


Valei-me, minha menina Jesus
minha menina Jesus
minha menina Jesus, valei-me.

Só volto lá a passeio
no gozo do meu recreio,
só volto lá quando puder
comprar uns óculos escuros.

Com um relógio de pulso
que marque hora e segundo,
um rádio de pilha novo
cantando coisas do mundo --
pra tocar.

Lá no jardim da cidade,
zombando dos acanhados.
dando inveja nos barbados
e suspiros nas mocinhas...

Porque pra plantar feijão
eu não volto mais pra lá
eu quero é ser Cinderela,
cantar na televisão...

Botar filho no colégio,
dar picolé na merenda.
viver bem civilizado,
pagar imposto de renda.

Ser eleitor registrado,
ter geladeira e tv,
carteira do ministério,
ter cic, ter rg.

Bença, mãe.
Deus te faça feliz
minha menina Jesus
e te leve pra casa em paz.

Eu fico aqui carregando
o peso da minha cruz
no meio dos automóveis,
mas

Vai, viaja, foge daqui
que a felicidade vai
atacar pela televisão

E vai felicitar, felicitar
felicitar, felicitar
felicitar até ninguém mais
respirar.

Acode, minha menina Jesus
minha menina Jesus
minha menina Jesus, acode.

Letra: Menina Jesus, de Tom Zé.

Memórias

"Aqui sob os epitáfios e as cruzes não há quase nada. Aqui não estarei eu. Estarão meu cabelo e minhas unhas, que não saberão que o resto morreu, e seguirão crescendo e serão pó."

Jorge Luis Borges.

sexta-feira, abril 09, 2010

Sois culpados


“Sois culpados”, sentenciam presidente, governador e prefeito, em meio à campanha eleitoral majoritária, cujo carro-chefe, o PAC, redimirá todos nós.

“Sois culpados”, corroboram Bonner e Bernardes, portavozes do grande capital, em horário nobre, do alto dos púlpitos televisivos do quarto poder.

“Sois culpados”, bradam os conservadores Democratas em referência aos africanos traficados d’além-mar, supostamente escravizados por seus próprios monarcas.

“Sois culpados”, decretava o alcaide Barata Ribeiro quando, no ocaso do século XIX, proclamando o fim da “era dos cortiços”, sem saber que dava início à “era das favelas”.

“Sois culpados”, entoavam Lacerda, Negrão de Lima, Faria Lima e tantos outros que pretendiam remover as favelas do cenário urbano carioca, ignorando a força e a importância daqueles que trabalham de sol a sol para trazer prosperidade ao comércio, serviços e lares de toda cidade do Rio de Janeiro.

“Sois culpados”, clama em uníssono a sociedade civil burguesa para a descomunal massa de excluídos, na tentativa de eximir suas consciências do dolo e da inércia frente à gravíssima iniqüidade da qual é, ao mesmo tempo, vítima, cúmplice e ré.

quinta-feira, abril 01, 2010

Criadores-criaturas

Por trás do segredo dos seus olhos tentava disfarçar as vicissitudes de uma vida vazia. O amor que ficou pra trás, o ódio mal resolvido o luto apaziguado, as palavras não ditas, a sentença não proferida. Injustiça, desamor, silêncio. Seres miseráveis em sua condição de criaturas impotentes perante o criador.

Mas quem vos criou? Seríeis criadores do criador? Ajoelhai-vos diante de vossa criação. Alienai-vos de vosso trabalho, vossas leis. Olvidai-vos de vossa obra e não reconheceis nela vosso próprio labor. Vossas mãos escreveram este livro, mas já não podeis lê-lo. Vosso suor ergueu esta catedral, mas já não podeis nela orar.

Blasfemastes, pecastes. Sois a escória de vós mesmos. Criadores-criaturas ignóbeis.

Eterno Mestre

Encheram-se de lágrimas seus olhos ao ouvir o professor. Gestos meticulosamente espontâneos, fala pausada, olhar sereno lembravam-lhe o avô. Como poucos, sabia dizer muito sem esforço. Palavras saíam-lhe dos lábios como mel, docemente. Seduzia a todos ao redor. Lições de história, filosofia, metafísica, alquimia e o raio-que-o-parta. Era como se contasse historinhas a dormir.

Não sou especialista em nada, pois tenho uma vida a viver, disse-o para conforto dos ouvintes. Deleitados, discípulos não sabiam se escreviam ou fitavam o mestre. A vida é um algo e o homem, demasiadamente humano, disparou nietszcheanamente.

Eterno retorno o que é, indagou o incauto discente. Respondeu citando Zaratrusta e lembrou o anão que, embaixo do Pórtico Instante, percebeu a infinitude do passado e do futuro que repetiam-se indefinidamente e decretavam o fim do fim da história.

quinta-feira, março 18, 2010

Felicidade


A felicidade o que é?

É aquilo que tem fim
Para Vinícius e Jobim

Para mim
Liberdade
Para Angenor
Maternidade
Para Lupicínio, o amor
Que foi embora e deixou saudade

Dinheiro no final do mês
Para dona Inês
O chope no boteco
Para seu Maneco
A gostosa da revista
Para o onanista

O gol feito com a mão
Os dez por cento de comissão
A grana do mensalão
Comprar a aprovação

O cérebro congelado
Em frente à televisão
O voto manipulado
O tiro no paredão

O carro novo na garagem
A mala pronta pra viagem

O artigo publicado
O trago do viciado

O baseado pra adormecer a gente
A cachaça no final do expediente

Inspiração pr’uma ideia
Os versos transpirados
Os aplausos da plateia
Os pulsos cortados

O início adiado
Meio do caminho andado
O quase acabado
O fim decretado

Carinho de quem se ama
Um beijo roubado
Dividir a sua cama
Amar e ser amado

Comer quando há fome
Beber quando há sede
Ganhar um vintém
Para quem nada tem

Se jogar no mundo
Soltar a gravata
Mergulhar bem fundo
É o que te falta

Aquilo que sonhamos
Sem saber por quê
Aquilo que perdemos
Por não merecer.




Ciço Pereira
Rio, 18 de março de 2010.