domingo, outubro 01, 2017

Precisamos ir a Cuba



Um dia, um conhecido me disse, entre um gole e outro de uma cerveja artesanal top: “Cuba é uma merda”. Era um desses sujeitos de classe média com diploma universitário, um emprego qualquer em uma dessas empresas bacaninhas de qualquer coisa e que, por ter um salarinho razoável, um certo status social e ser amigo de outros caras bacaninhas, arrota convicções com a displicência de quem defeca no vaso sanitário.

Mas não. Ele jamais havia estado em Cuba. Eu acho. Ou, é até possível que tenha estado. Mas, se esteve, foi para tomar mojito em Havana Vieja e bucear em Varadero. Dificilmente comeu uma cajita sentado no meio fio de uma calle de Centro Havana, nem esperou por três ou quatro horas para tomar uma guagua.

Grande parte dos brasileiros que proferem juízos de valor a respeito de Cuba o fazem a partir de um ideal capitalista, de uma visão de mundo forjada através de uma lógica de consumo, do liberalismo econômico e de um modelo de democracia burguesa. Muitos daqueles que vão à Ilha justificam o motivo da viagem dizendo: “vim a Cuba antes que Cuba acabe”. Olham para aquela experiência socialista como um fetiche, algo ultrapassado, mas que resiste apenas como uma atração turística com prazo de validade para terminar. Se esquecem que estão em um país da América Central, vizinho do Haiti, República Dominicana, Nicarágua, El Salvador e Honduras, e o comparam à Suíça, Noruega e Dinamarca.

Estive em Cuba em duas oportunidades. Em 2005 e em 2015. Nas duas vezes, o que mais me impressionou foi a solidariedade daquele povo. Não apenas entre si, mas para com qualquer pessoa que aparente estar passando por algum tipo de dificuldade. Na primeira vez, uma mulher com sete ou oito meses de gestação, a quem havia conhecido pouco tempo atrás, durante as intermináveis horas que passei no ponto de uma guagua (ônibus), desceu do coletivo e foi ao meu lado correndo até o ponto seguinte para que eu não perdesse a viagem no próximo que sairia dentro de alguns minutos. Na segunda vez, confuso com as moedas (em Cuba, usa-se o peso cubano e o peso convertible, ou CUC) que usaria para comprar uma garrafa d’água, uma pessoa que passava pela rua, que eu jamais vira antes e jamais voltaria a ver novamente, entregou ao vendedor o valor restante que faltava para que eu concluísse a compra.

Os cubanos não passam todo o tempo de suas vidas preocupados em não serem otários, pesadelo maior do cidadão que vive no país do “jeitinho”. Simplesmente por que, em um país socialista, a competição entre os indivíduos não existe. As dificuldades econômicas são grandes, mas não a ponto de não estender a mão a uma outra pessoa que precise da sua ajuda, seja ela quem for.

A identidade mambí é outra coisa, bastante diferente do otário, ou de seu outro, o malandro. Conta-se que o colonizador espanhol, ao chegar àquela ilha paradisíaca, tentou escravizar o índio. Desacostumado à escravidão, o nativo obviamente resistiu. Passou a ser chamados de mambí, sujeito preguiçoso, indolente. Até hoje, é possível encontrar nas paredes de Centro Havana, grafites com a bandeira cubana seguidos das expressões “mambí” e “yankees go home”. Assim, consolidou-se uma identidade nacional, o mambí, o indivíduo resistente, guerreiro, lutador, que manteve a soberania de seu país, sobrevivendo a um bloqueio genocida, que já dura mais de 60 anos, a diversas tentativas de invasão, ataques terroristas, espionagem e demais tentativas de boicote ao regime.

Hoje, Cuba está em transformação. As gerações mais novas querem novidades, anseiam desesperadamente conectar-se à internet. Por isso, os paquetes (arquivos de filmes, séries, jogos e demais conteúdos salvos em pen drives, que são vendidos nas esquinas, quase como que contrabandeados) são uma coqueluche entre os jovens, em uma realidade em que dez minutos de conexão podem custar o salário de um mês inteiro de trabalho. Também desejam comprar celulares modernos, roupas da moda e demais acessórios, muitas vezes inacessíveis ao cubano médio.

Por esses e outros motivos, foi aprovado, por meio de um referendo popular — naquela que a mídia e a classe média brasileira insistem em chamar de ditadura — os chamados “lineamientos”, uma espécie de gradual abertura econômica para um chamado “Socialismo de mercado”. Com esta proposta, torna-se possível a criação de empresas familiares, iniciativas de empreendedorismo e outras medidas que possibilitam a desvinculação do Estado de seu papel de único regulador da economia local. Pode-se dizer que a cúpula do Partido Comunista Cubano hoje está divida entre uma gestão mais ortodoxa e a abertura econômica. Miguel Diaz-Canel, primeiro vice-presidente do Conselho de Estado de Cuba e apontado como futuro sucessor de Raúl Castro, vê com bons olhos a segunda possibilidade.

Talvez esta alternativa seja inevitável. Diante do bloqueio econômico, da déblâque da União Soviética e da consequente desindustrialização do país, o Turismo foi a única maneira encontrada para a manutenção do regime cubano, a partir dos anos 1990. No entanto, ao mesmo tempo em que possibilitou ao Estado obter recursos suficientes para manter um padrão de excelência em Educação e Saúde — referências em todo o mundo — universais para todos os seus cidadãos, aos poucos vêm minando as convicções socialistas dos mais jovens.

Ainda assim, o legado revolucionário é inegável. O orgulho nacional, a inexistência da miséria, do analfabetismo e da mortalidade infantil, o alto grau de escolaridade e de conscientização política, mas, sobretudo, a solidariedade são valores que dificilmente serão perdidos com uma possível — ou até mesmo provável — transformação da política econômica.

“Os últimos dias em Havana” (em cartaz nos cinemas daqui) mostra com muita sensibilidade exatamente isso. Em um cenário de muitas transformações, o povo cubano permanece solidário, íntegro, digno e orgulhoso. É um filme que precisa ser assistido. Em primeiro lugar para ajudar a desconstruir alguns lugares comuns sobre aquele país tão rico culturalmente, contraditório e, por isso mesmo, tão parecido com o nosso.

Em segundo, para nos fazer refletir sobre a nossa própria realidade. No momento em que as incertezas e as dificuldades tendem a se agravar, precisamos olhar para um outro projeto de nação, que se ocupou da construção de um “novo homem” (usando as palavras de Fidel Castro, quando da morte de Che Guevara), cultivou uma maior harmonia entre os indivíduos, baseada na solidariedade, na coletividade, e não na competição fratricida, no ódio e na violência contra os seus pares como forma de obtenção de privilégios e de distinção social.

“Vai pra Cuba”, dizem aqueles que não querem ir para lá de jeito nenhum e proferem esta frase repletos de ódio contra quem pensa e se posiciona politicamente de maneira diferente. Mas ouso suspeitar de que é preciso ir a Cuba - ao menos através da tela do cinema - como uma forma de tentar tirar o Brasil do caminho sombrio por onde insistem em nos levar.

Quando puder eu vou. De novo. Ah, mas se vou.