segunda-feira, dezembro 21, 2015

Diez años después ou Cuba e Brasil: reflexos e refrações


“Vá a Cuba antes que Cuba acabe”. A expressão que você já deve ter ouvido algumas centenas de vezes talvez seja a chave para compreender um pouco este país tão complexo e contraditório quanto maravilhoso. Estive em Cuba pela segunda vez em dezembro de 2015, exatamente dez anos depois da primeira. Um pouco mais velho e experiente, mas também mais cansado e chato, lembrei-me de outra expressão popular: “você nunca vai duas vezes ao mesmo lugar”, ou coisa que o valha. Nós mudamos, eles também.

Cuba tem uma atmosfera única. É um lugar encantador e por este motivo espera receber mais de 4 milhões de turistas este ano. O clima é ameno, as pessoas comunicativas, alegres e sorridentes. O cenário é daqueles de filme anos 50, com carros e prédios antigos aos montes e uma trilha sonora que vai dos clássicos de Buena Vista Social Club às envolventes canções de salsa e rumba. O povo cubano assemelha-se muitíssimo ao brasileiro – mais particularmente ao baiano - pela mescla de cores, extroversão, sensualidade, abusando de roupas curtas, justas e coloridas.

Mas o cubano também se destaca pelo alto nível de educação formal, inteligência e sagacidade. É possível falar sobre política, economia, cultura, esportes com qualquer pessoa na rua, dos 12 aos 89 anos. Nos jornais – distribuídos gratuitamente entre os cidadãos do país e a poucos centavos aos turistas – podem ser lidas reportagens e artigos que vão desde o processo de impeachment da presidenta Dilma até a guerra na Síria. Curiosamente o artigo “Quanto espaço ocupa o conhecimento?”, de Osviel Castro Medel, publicado no jornal Juventud Rebelde, em 4 de dezembro, questiona a qualidade dos programas transmitidos pela televisão e das demais formas de entretenimento eletrônico consumidas pelos cubanos. Não por acaso, quando nos identificávamos como brasileiros, a reação imediata era um largo sorriso no rosto seguido da frase: “Me encanta muchísimo las novelas brasileñas”. 

CDRs

Mas a proximidade entre Brasil e Cuba não resiste a uma observação mais atenta ao hábito cubano, estimulado desde a infância e cultivado durante toda a vida, de falar sobre política. O ensino escolar abrange 100% das crianças no país e é possível ver grupos entusiasmados delas nos museus e monumentos da cidade. Na idade adulta, os cubanos participam ativamente dos Comitês de Defesa da Revolução (CDRs), instalados em cada quarteirão de cada cidade do país. Os CDRs foram criados em 1961, após o ataque estadunidense a Playa Gyrón, que vitimou entre 500 e 4 mil pessoas. Após a batalha, vencida pelo exército revolucionário liderado por Fidel Castro, o comandante-em-chefe declarou o caráter socialista da revolução cubana e determinou a criação dos comitês, o que foi seguido com entusiasmo por grande parte dos cidadãos. Na prática, eles funcionam como instrumentos de controle contra possíveis traidores, espiões (sim, a Guerra Fria ainda é uma realidade em Cuba), mas também são locais de discussão sobre política e economia do país e do mundo, o que faz com que seus membros sejam pessoas com elevada capacidade de análise e reflexão. 

Conversar com as pessoas nas ruas, nas casas e no comércio é a melhor maneira de verificar a perspicácia do povo cubano. Tivemos o privilégio, ainda, de participar de um congresso de pesquisadores de Comunicação Social, realizado em Havana, entre o dia 7 e 11 de dezembro, e assistir a palestras de intelectuais daquele país. Em resposta aos que consideram Cuba uma ditadura e seu povo doutrinado, o professor José Ramón Vidal, da Universidade de Havana (UH) e jornalista do Juventud Rebelde, destacou o esforço do governo cubano em tentar acompanhar as inúmeras transformações em curso na Ilha. Podemos conhecer uma dessas mudanças mencionadas no trabalho dos pesquisadores Cinthya Cabrera Tejera, Liliam Marrero e Fidel A. Rodríguez, também da UH, sobre os paquetes eletrônicos. Trata-se de conteúdo audiovisual vendido no mercado paralelo. Por uma módica quantia é possível comprar cerca de 50G de séries e filmes americanas, mexicanas, colombianas, brasileiras, chinesas, turcas, iranianas... que não estão disponíveis nos canais de TV aberta. Como o acesso à internet é caro e a conexão, muito ruim, os paquetes estão ganhando cada vez mais espaço entre as novas gerações. E o controle deste comércio, ainda que fosse tentado, seria quase impossível.

Mambí

Estar em Havana é muito mais do que caminhar pelo Malecón, passear em Havana Vieja, tomar mojito, fumar um puro e ouvir algum grupo tocando “Chan Chan” na Bodeguita del Medio. É fundamental visitar, pelo menos, os museus de la Revolución, de Arte Cubano e o Memorial José Martí. Eles são imprescindíveis para compreender por que os cubanos têm o jeito meio malandro, irreverente, rebelde. É um povo que lutou duas vezes por sua independência – entre 1895 e 1898, contra a Espanha – e em 1959 - quando Camilo Cienfuegos, Célia Sanchez, Ernesto Che Guevara, Fidel Castro Ruz, Haydée Santamaria, Melba Hernández, Raúl Catro Ruz, Wilma Espín, e demais revolucionários derrubaram Fulgêncio Batista, o ditador a serviço dos Estados Unidos. A índole de desobediência aos colonizadores espanhóis deu origem ao termo mambí, inicialmente de caráter pejorativo. Com o tempo, o adjetivo tornou-se motivo de orgulho e forjou a identidade de todo o povo.

Para a conformada elite brasileira é um tapa na cara aprender como representantes da alta intelectualidade cubana recorreram às armas para libertar a sua gente. José Martí, graduado em Direito, Literatura, Filosofia e Letras, ganhou notoriedade por meio de seus poemas e crônicas, que inspiraram a luta pela libertação cubana em relação à Espanha. Em 1895, ao lado de Máximo Gomez, Antonio Maceo, Calixto Garcia e outros, lidera a guerra da independência, mas é ferido de morte em combate. Torna-se mártir e o maior herói cubano, ou simplesmente El Apóstol. A independência de Cuba é reconhecida pelos Estados Unidos em 1898, mas em troca, o país torna-se mais uma das repúblicas de bananas da América Central, onde os yanques vão divertir-se com o jogo e a prostituição de baixo custo. Em 1959, o jovem advogado Fidel Castro (filho de um rico fazendeiro espanhol) lidera um exército guerrilheiro que se embrenha pelas serras Maestra e Escambray para derrubar a ditadura de Batista financiada pelos Estados Unidos. Após o triunfo, estatizam latifúndios, promovem a reforma agrária, democratizam o acesso à saúde, à educação, erradicam o analfabetismo e a mortalidade infantil e estabelecem a justiça social na Ilha.

O embargo estadunidense, até hoje vigente, é um entrave importante para o desenvolvimento econômico do país. Com o fim da União Soviética, em 1991, a situação se agrava e o país adota cada vez mais o turismo como principal atividade econômica. O assédio sofrido pelos turistas nas ruas é um sintoma disso. O valor do CUC (ou Peso Convertible, moeda utilizada pelos estrangeiros) é equivalente ao Euro e é preciso estar muito atento para não gastar além da conta. Em Trinidad, localizada na província de Sancti Spiritus, os turistas são recebidos na rodoviária por uma fileira de pessoas que oferecem hospedagem, restaurantes, taxis, passeios a cavalo e demais serviços. Ao dobrar uma esquina não se assuste com uma abordagem imprevista seguida da pergunta “De que parte son?” e do oferecimento de um bom lugar para jantar e ouvir música. Aqueles que conquistam clientes recebem comissão. Ainda que possa incomodar, é preciso ponderar. Afinal, trata-se de 11 milhões de pessoas que, após duas lutas pela sua independência, continuam a pelear.

Socialismo

A situação do país hoje parece muito complexa, difícil de ser analisada em breves e apressadas linhas como essas, e uma previsão, inútil. No entanto, voltando à frase que inicia este texto, penso que ela pode nos dar uma pista. Ao encontrar dezenas de turistas alemães tanto em Havana como em Trinidad, perguntei a três deles, em diferentes momentos, o motivo pelo qual tantos visitavam a Ilha. Todos responderam a mesma coisa. Mas, ao contrário do que eu supunha, a resposta não foi o valor da viagem, mas sim: “queria vir a Cuba antes que Cuba acabe”. Fiquei com aquela frase na cabeça alguns dias até que lembrei-me de John e Jean Comaroff, autores de “Ethnicity, Inc” (2009). Neste livro, o casal de antropólogos sul-africanos fala sobre como as identidades nacionais de diversas culturas ao redor do mundo tornam-se valores a serem agregados ao seu preço final no mercado do turismo. Por exemplo, um líder xamã de uma pequena cidade peruana que ensina aos estrangeiros os mistérios de sua tribo. Uma cidade no Quênia, em que os turistas pagam para conhecer as peculiaridades da cultura africana. Ou, para ser mais claro, os chamados jeep tours, em que turistas louros e brancos sobem a bordo de veículos camuflados, tais como seus similares de guerra, para conhecer as favelas cariocas. Em suma, em um mundo globalizado, onde as grandes cidades tornam-se cada vez mais semelhantes, com arranha céus, letreiros luminosos de fast foods, marcas de aparelhos eletrônicos e instituições bancárias transcontinentais, paga-se caro para ter acesso ao que nos é diferente, peculiar, exótico. No caso de Cuba, parece-me que o socialismo morreu e ressuscitou como commodity. Todos querem ir até à Ilha comprar suas guayaberas, boinas e demais souvenires revolucionários, fotografar os carros antigos e os conjuntos de prédios de arquitetura Art Noveau e Art Déco

Paradoxalmente, o povo cubano anseia consumir. E parece-me que hoje ainda mais do que dez anos atrás. Talvez por causa do próprio turismo, que alimenta o desejo por novidades de um mundo tecnológico, ainda distante. Ao mesmo tempo em que suas necessidades básicas de saúde, educação, alimentação e higiene estão satisfeitas, aquele que pode proporcionar-lhes esta saciedade capitalista é justamente o turista que foi atrás dos resquícios do socialismo. Assim como a “Cidade Maravilhosa”, hoje devastada por anos de má gestão, poluição no mar, na terra e no ar, violência urbana, trânsito caótico e demais males, o Socialismo em Cuba é uma utopia que turistas anseiam conhecer. Ao mesmo tempo em que o ideário socialista contribui para preservar o regime ainda vigente, é ele que sustenta o turismo que pode, um dia, liquidar o seu próprio legado.

Um exercício de futurologia é quase sempre arriscado, mas ouso apostar minhas últimas moedinhas de CUC que Cuba não vai acabar como temem os alemães. Ela estará lá sempre, com seus carrinhos, predinhos e boinas, à espera dos incautos turistas. No entanto, prever se o legado da revolução resistirá a um futuro capitalista é impossível. 

Referências

COMAROFF, John L. e Jean. Ethnicity, Inc. University of Chicago Press: Chicago, 2009.

JUVENTUD REBELDE. Diário de la juventud cubana. Edición Digital. Disponível em . Último acesso em 22 dez. 2015.

MEDEL, Osviel Castro. ¿Cuánto espacio ocupa el conocimiento? Juventud Rebelde. Viernes, 4 de diciembre de 2015, p. 02.

PORTAL JOSÉ MARTÍ. Disponível em http://www.josemarti.cu/. Último acesso em 21 dez. 2015.

TEJERA, Cinthya Cabrera, MARRERO, Liliam, RODRÍGUEZ, Fidel A. Rutas USB. Acercamiento a la gestión de contenidos audiovisuales en el formato Paquete que realizan actores no institucionales em redes informales em La Habana. Apresentação de pôsteres. Eje temático 2: Descolonización, identidade cultural y tecnologias de la información y la comunicación. VII Encuentro Internacional de Investigadores y Estudiosos de la Información y la Comunicación. IX Congreso Internacional de la Unión Latina de la Economia Política de la Información, la Comunicación y la Cultura.  La Habana. 7 -11 Diciembre, 2015.



Texto e Fotos: Ciço Pereira
Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 2015.