sexta-feira, dezembro 13, 2013

13 de dezembro

Mudanças
Afirmações
Golpes
Revoluções

O que não mata
Nos faz mais fortes
O que afeta
Para sempre altera

Viver é tomar rumos inesperados
A partir dos quais é impossível retornar

Eterno retorno
Brusca mudança

Pelas mãos do destino
Ou pelas próprias
Não somos mais quem éramos antes

Um passo
Um acorde
Uma estrofe
Um instante

Para mudar
Já é o bastante.

Ciço Pereira
Rio, sexta-feira, 13 de dezembro de 2013.

terça-feira, agosto 20, 2013

Um cara

Há muito tempo conheci um cara. De boa família, bem nascido, como dizem os tijucanos, caretas e rodrigueanos. Venceu na vida, tornou-se doutor, de acordo com os ditames capitalistas e vizinhas mexeriqueiras. Apartamento próprio, carro na garagem, emprego público, bom partido. Tudo certinho, arrumadinho, limpinho e ajeitadinho. Meia dúzia de bons amigos de quem recebia os telefonemas nos dias de aniversário e mais uma penca de confrades e camaradas, com quem podia tomar umas cervejas nas vésperas de feriado e dias santos. As mulheres tampouco lhe faltavam. Respeitador, cavalheiro, pagava a conta, abria a porta, puxava a cadeira etc e tal. Não era o tal, mas também não fazia feio na alcova. Em suma, um cidadão tipicamente mediano, desses muitos que se encontram por aí.

Apesar de tudo nos conformes, parecia sempre carregar um ar tristonho, um olharzinho baixo, um semblante carregado. Tá certo que o América não anda lá muito bom das pernas há muito tempo. Mesmo assim, sorria, bebia, comia e conversava amenidades no boteco da esquina, participava animadamente das rodinhas de carteado, jogava conversa fora com a turminha da praia, vez por outra viajava para um lugar ainda desconhecido. Mas o sorriso era aquele assim, meio amarelo, meio de lado, envergonhado, com medo de sair, acontecer alguma coisa e... tudo mudar. 

Era como se fizesse um esforço desgraçado para estar ali, naquela média pra lá de comum a qual fazia parte, mas que talvez lhe fosse imposta. E mesmo assim, não estava satisfeito. Parecia sentir que tudo aquilo um dia iria embora. Ou então que nada daquilo era suficiente. Como se tudo que fizesse para ser amado pelos outros não fosse suficiente, pois não conseguia amar a si mesmo. Buscava a aceitação no outro e ficava feliz quando ela vinha. Ah, a felicidade, esta coisa desconhecida que ninguém consegue definir, todos almejam e que, por isto, dela somos escravos. O diabo era quando parecia não ser amado. Uma simples palavra não dita, um aceno ignorado, um beijo negado, um bom dia não respondido, um abraço apressado era suficiente. Sentia-se abandonado, desprezado, a pior das criaturas. Faltava-lhe o ar, ardia o peito, como se fosse sangrar até a morte. Passava as noites em claro e os dias sem rumo. 

Carecia de amor próprio, aquele do bom selvagem rousseauniano, das priscas eras pré-civilização, quando não cobiçávamos ter o que não tínhamos e contentávamo-nos com o que nos era essencialmente autêntico. Não esta autenticidade pós-moderna fabricada, em que todos buscam ser diferentes como todo o mundo. O meu amigo pós-moderno sofria do mal do século: o amor autêntico ou o não-amor próprio. 

Outro dia revi o cara. Estava lá na mesma esquina de sempre, sorrindo, entre outros amigos, bebendo, comendo, falando. Por um breve instante, pude perceber uma lágrima furtiva rolar face abaixo, que ele logo tratou de enxugar antes que alguém percebesse. Minha vontade era chegar mais perto, dar-lhe um abraço apertado e dizer-lhe: ama-te! Mas, antes que pudesse me aproximar e pronunciar qualquer palavra, o cara se foi. Saiu de mansinho, rumo ao seu mundo interior.


Ciço Pereira

Rio, 20/08/2013.

quinta-feira, agosto 08, 2013

Amar é...



Amar é correr
Através do desconhecido

É chegar
Onde nunca se devia ter partido

Amar é esperar
Pelo outro apressado

É viver
Em nome do ser amado

É deixar viver
Mesmo estando aprisionado.

sábado, julho 06, 2013

Pequenas distrações



A antiga mureta subiu com a rapidez com que sobem os tijolos de uma sepultura. As setas dos portões cresceram apontadas para o céu e só não se perderam no espaço porque a laje do primeiro andar do sobrado as conteve com determinação. Uma guarita se instalou na calçada entre as árvores moribundas e a entrada dos automóveis, vigiando o cimentado que, antes da reforma, era um jardim ingênuo de copos-de-leite e rosas vermelhas. As janelas de cima dão, contra a vontade, para a rua, envergando grades de puro aço, com vãos que mal permitiriam a passagem de um gato esguio. Ao fundo da casa, batendo com a parede de trás de um templo evangélico, um muro subiu desmedidamente protetor e curvou-se sobre a área de serviço, expandindo-se em seguida para o corredor lateral e eliminando em definitivo a conversa com os vizinhos. Para defender a privacidade do que se falava e proteger a casa dos cânticos de fé entoados pelo populacho, gastou-se no revestimento acústico o que era uma verdadeira fortuna para os padrões daquele bairro novo rico da antiga periferia. As armações do telhado foram reforçadas in extremis, de modo a evitar perigos que a ousadia dos salteadores poderia trazer do alto. A casa antigamente singela só não se transformou num bunker total de segurança máxima porque permanecia vulnerável à queda dos aviões e – do jeito que as coisas iam – aos bombardeios aéreos de que, mais cedo ou mais tarde, o crime lançará mão.

O patrimônio da família – o medo – estava provisoriamente a salvo; medo dos ladrões, dos seqüestradores, dos estupradores, medo dos ventos, das enchentes, dos miseráveis, dos poderosos, dos fiscais, medo do terror, dos traficantes, dos negros, dos nordestinos, medo dos maloqueiros da favela, dos vendedores, dos cobradores, dos pregadores fanáticos, dos moto-boys que fumam maconha, dos ônibus lotados que despencam pela rua, medo da liberdade, medo da morte, medo da vida, medo do outro.

Apesar de já inexpugnável, a fortaleza carecia de ainda mais. Sim, porque a segurança somente seria segura se pudesse contar com mecanismos de metassegurança, ou seja, camadas sistêmicas que se sobrepusessem ao sistema, vigiando seus próprios agentes protetores. Era preciso ter certeza da qualidade dos serviços contratados; era preciso assegurar-se da confiabilidade dos guariteiros. Assim, a família instituiu o uso doméstico do crachá. Todos os nove residentes – pai, mãe, avó, tio-avô, filho, duas filhas, nora e genro – deveriam portá-lo no peito, cabendo ao guariteiro liberar a entrada somente aos que cumprissem a norma; nos casos de esquecimento ou perda do crachá, o morador retornante ficaria retido entre dois portões eletrônicos internos, acionados por controle remoto, à espera do reconhecimento e da conseqüente liberação de sua entrada por outro membro da família.  A área de espera intraportões poupava ao infrator da norma aguardar do lado de fora, na rua, onde não poderia ter garantida sua segurança pessoal.

Constatada a perda de um crachá, um sistema de emergência forneceria senhas provisórias a cada membro da família, onde estivesse, até que se renovassem todos os crachás, impedindo o uso indevido por terceiros do exemplar perdido (roubado?!). De início, as mulheres da casa questionaram a real eficácia do método e protestaram contra o anúncio de que haveria também crachás para visitantes, o que condenaria ao fim o gosto da filha mais nova, de 15 anos, vista em casa como perigosamente distraída, em receber amigas da escola. Mas, tiveram de curvar-se à evidência: só assim se poderia verificar se eram mesmo cumpridores e responsáveis os guariteiros. Sem crachá, ninguém entra; nem o dono, por mais inconfundível que seja aos olhos dos seus servidores. Decidiu-se ainda pela obrigatoriedade de os guariteiros preencherem relatórios diários, enumerando horários de saídas e entradas e, numa coluna de ocorrências extraordinárias, a passagem de terceiros, como carteiros, entregadores de jornais, mendigos e outras pessoas vistas com suspeita.

Esses relatórios subiam à noite para o escritório, onde a nora elaborava planilhas de movimentação diária e as guardava num cofre-forte, mas poderiam ser requisitadas pela avó a qualquer momento para verificações emergenciais e confrontações com relatos pessoais de cada membro da família sobre estranhamentos no trânsito; afinal, uma mera fechada por automóvel ou moto poderia não ser mera. Quem sabe se não estaria ali se esboçando o crime hediondo de um seqüestro? O crescimento vertiginoso desse tipo de evento nas estatísticas determinava a preferência da família por carros populares, os únicos capazes de não chamar a atenção dos criminosos à espreita. Mas, como bastasse um único descuido para pôr tudo a perder, resolveu-se elidir os riscos, providenciando-se a blindagem da frota familiar de Uno Mille.

Num mês seguinte, decidiu-se instalar uma câmara de vídeo voltada para o interregno de portões, com o fito de assegurar o reconhecimento dos chegantes diretamente da sala de visitas, sem que o responsável por isso tivesse que se expor. Da sensação renovada de maior segurança, comodidade e encantamento tecnológico, evoluiu-se para um sistema completo de captação de imagens e de sons, ocultando-se microcâmaras e microfones nos pontos do lar considerados estratégicos. As motivações para esse passo adiante foram o aprimoramento, sempre possível, do controle interno e a conveniência de se ter gravada a imagem do delinqüente que ludibriasse o sistema e invadisse a casa. Também feminina foi a primeira resistência a esse avanço, quando a filha mais nova, de 15 anos, vista em casa como perigosamente distraída, esqueceu-se da vigilância eletrônica e, masturbando-se, foi surpreendida pela câmara instalada na despensa. Por não saber como abordar o assunto, o pai fingiu não ter visto nada e transferiu o fardo para a mãe.

As mulheres foram informadas de que sua intimidade estava suspensa, não lhes sendo aconselhável banhar-se ou trocar de roupa sem antes reservarem horários apropriados, de curta duração, em que as gravações nos banheiros seriam interrompidas para revisão técnica. A mãe contornou o mal-estar argumentando que, se aquele era um preço alto a ser pago, seria ainda muito baixo caso as câmaras viessem um dia a registrar cenas de estupro por um invasor. Quanto à filha mais nova, de 15 anos, vista em casa como perigosamente distraída, foi severamente admoestada pela indecência com que gerou a situação, mas ganhou da cunhada, para consolação, um filhote de chiuahua, a que deu o nome de Speedy Gonzãlez e tanto se apegou, que passaram, ela e o animal, a ser tratados em casa como o casal González.

O sistema de segurança era agora comprovadamente perfeito. Mas o medo é esperto, cheio de manhas, capaz de contorções absurdas para se adaptar a emoções em cacos e não abandonar o barco. O pior poderia estar por segundos. E se algo falhasse? Foi necessário reforçar a defesa com pitbulls amestrados: Goebbels e Goering corriam lestos e sagazes num cercado do quintal, como penúltima instância. Sim, porque havia ainda uma última instância: metralhadoras de cano curto Kalashnikov, adquiridas a um contrabandista para armar a família contra as terríveis conseqüências de um porre, de um surto de loucura ou, mesmo, da traição do segurança nordestino de plantão. Ao encomendar-se uma pizza, por exemplo, como ter a certeza de que o entregador, mancomunado com o cafuzo da guarita, não invadiria a casa, envenenando os cães e fazendo refém toda a família? A falta no Brasil de guariteiros ágeis como galgos e perspicazes como perdigueiros, mas leais como são-bernardos, germanicamente preparados, foi responsabilizada por mais esse gasto no mercado clandestino, ilegal, ocupado exatamente por aquele tipo de gente de quem cumpria defender-se. A lógica imperava mais uma vez: para enfrentar o pior inimigo, só mesmo com a mais poderosa arma do pior inimigo.

O recebimento da pizza, duas vezes por semana, mereceu o nome de Operação Margherita I, tendo se repetido depois como II, III, IV, XVII, LXI... e assim por diante. Consistia na distribuição dos homens da família em pontos recônditos da casa, à espreita, com suas Kalashnikov em punho, prontas para disparar, escondendo-se o pai atrás da janela do sótão, com uma granada na mão, de onde poderia observar o entorno, a rua, e contra-atacar, se necessário. Enquanto o mulherio se postava em alerta na sala de jantar, empunhando talheres pontiagudos, especialmente afiados para a ocasião, com que decepariam aos vilões acuados os dedos, a mão ou o que mais fosse preciso, o tio avô recebia a entrega pelo vão da jaula de portões, não sem antes obrigar o entregador a provar um naco de pizza, para certificar-se de que não trazia soporíferos, barbitúricos ou drogas de qualquer espécie que pudessem arrefecer as trincheiras da família. A filha mais nova, de 15 anos, vista em casa como perigosamente distraída, odiava a Operação. Ao cortar a pizza no prato, tremia de imaginar que naquele momento poderia estar empunhando os mesmos talheres na punição que o pai planejara para os invasores. Ao passar bocadinhos carinhosos do recheio para Speedy González, no colo, afligia-se de pensar que estivesse servindo ao animal picadinhos de dedos ou de alguma outra parte do corpo a que preferiria, ela, dar destinação mais gloriosa e integral.

Alguma vez, à mesa, ao cabo de mais uma Operação Margherita, a filha mais nova, de 15 anos, vista em casa como perigosamente distraída, deve ter perguntado à família por que atravessar a vida arrastando esse fardo cruel, que nada contém senão o medo do que poderia um dia, talvez, quem sabe, porventura, vir a acontecer? Por que não baixar a guarda e cuidar, sem temor, para que a vida pudesse correr solta? Lá fora? A filha mais nova, de 15 anos, se chegou a fazer essas perguntas em casa, foi vista, é claro, como perigosamente distraída. Ingênua! Como seria possível fecharem-se os olhos para a realidade? E a realidade é que, hoje, não se respeitam mais os valores que fizeram o mundo caminhar até aqui. As cidades do Brasil estão nas mãos da bandidagem. E sabe onde se escondem os bandidos? Nem mais se escondem. Hoje, são as pessoas direitas que se escondem. É preciso desconfiar de tudo e de todos, porque o tiro certeiro ou a bala perdida vêm. Não se sabe mais de onde, mas vêm! Chamar a polícia? Nem pensar.

O poder público perdeu completamente a capacidade de garantir a segurança dos cidadãos. Está certo que há delegados bem formados e, em princípio, razoavelmente confiáveis. Mas andam em má companhia: não há, por certo, um único policial civil ou militar que sobrepuje a horda social de que se origina, a mesma em que nasceram e se reproduzem como moscas os ladrões, a bandidagem, a malandragem, os estupradores e os salafrários de toda espécie, sempre a postos para atacar, qual uma corja de raposas circundando um galinheiro. E em se tratando – policiais e foras-da-lei – de bestas da mesma estirpe, farinha do mesmo saco, não há como desprezar a idéia de que tramam juntos. Chamar a polícia seria o mesmo que abrir as portas de casa a essa gente, expor as fragilidades do nosso reduto a pessoas suspeitas, que depois, certamente, darão o serviço a sabe-se lá quem!

Os que vivem de esperar a tragédia são os que melhor sabem atraí-la. Por distração da filha mais nova, de 15 anos, vista em casa como perigosamente distraída, Speedy González, o filhote de chiuahua, escapou para o quintal e invadiu o cercado dos pitbulls, sendo estraçalhado por Goering. Vinha atrás a filha mais nova, de 15 anos, vista em casa como perigosamente distraída, que não chegou a tempo. Em estado de choque, seus olhos puderam apenas acompanhar os minutos finais do minúsculo Speedy González devorado pelo mastodonte, que lutava por não dividir o petisco com o enfurecido Goebbels.

A família acachapou-se de tal forma com o estado da filha, que decretou por três dias o toque de recolher, durante o qual se deveriam extrair lições da tragédia doméstica estampada nos olhos esbugalhados e no silêncio estarrecido da bela menina recolhida à cama. Haveriam de compartilhar o didatismo do espetáculo terrível: um mero acidente doméstico causava um abalo sísmico. Como seria então se o pior acontecesse? O que seria deles se a tragédia viesse de fora, pelas mãos criminosas de estranhos? Já no segundo dia, porém, a consternação familiar se esvaziou, dando espaço a algo irrefreável que tomava corpo: um discreto sentimento de orgulho para com a atuação de Goering, em sua primeira situação de risco enfrentada naquela casa: diante do cãozinho invasor, não negou fogo, mostrou a que veio.

No terceiro alvorecer, a filha mais nova, de 15 anos, vista em casa como perigosamente distraída, trajando um baby-doll cor-de-rosa transparente sobre o corpo nu e calçando pantufas, desceu plácida para o quintal, rumo ao cercado dos cães. Esganiçando, Goebbels e Goering lançaram-se em sobressalto contra a grade. Uma Kalashnikov ergueu-se serena e calculadamente nas mãos da menina e metralhou os cães. Com a mão esquerda brandindo a arma para o alto, o braço direito e os quadris da menina iniciaram um meneio lento e sensual, evoluindo para a fúria lasciva de uma dança inebriante e orgástica em torno dos cães mortos. Os olhos azuis extasiados descobriram a câmara posta no alto. Num golpe arrebatado, a filha mais nova rasgou a seda cor-de-rosa frontal que a cobria e, orgulhosa e provocadora, ofereceu os peitos ensoberbados para o equipamento, após o que, o metralhou. Até aquele momento, toda a cena poderia ter sido assistida pelo circuito interno de TV. Mas por quem, se já não havia sobreviventes?

Texto de Gregório Bacic.

domingo, maio 19, 2013

Desistir

Desistir não é simplesmente abandonar
É principalmente transgredir, transformar

É acima de tudo subverter
Refugar, arremeter
Freiar, estancar, respirar

É entrar em contato
Com o elemento acomodado
E incomodá-lo

Desacostumar-se
Soltar a gravata
Da forca libertar-se
Do opressor que maltrata

Para desistir é preciso coragem
Deixar o porto seguro
Que já ficou escuro
E lançar-se no vazio

Mudar de lugar
Submeter-se ao calor e ao frio
Abdicar à paisagem
Que agora não passa de miragem.

domingo, maio 12, 2013

Quando um torna-se dois

Na hora mais escura e fria
Aquela que antecede o raiar do dia
Lá foi ele com vontade
Em busca de paz e liberdade

Sem saber ao certo o que queria
Mas com a certeza que não mais podia
Dar de si sem a retribuição
Do reconhecimento pela dedicação

Dos anos de vida em comum
Com suas dores, delícias, tédios, erupções
Em que dois tornaram-se um
Mas, enfim, cada um precisou viver suas próprias emoções

Então o um tornou-se novamente dois
O que era comum antes
Virou meu e seu depois

E da vida dos que já foram amantes
Restam as lembranças de tudo o que um dia foi.

domingo, abril 28, 2013

Intransferível


Há 15 anos
Uma ferida sangra
No fundo do peito
E não cicatriza

Ao menos agora
Posso senti-la
Tocar sua carne
Verbalizá-la

Viver esta dor
É intransferível
Por isso permito

Vivê-la a cada instante
Cuidá-la a cada dia
Até o meu último.


Ciço Pereira, 28/04/2013.

quinta-feira, março 14, 2013

Tão pouco

Seguindo a lição do profeta
Compartilhemos a gentileza
O mesmo faz este poeta
Disseminando a delicadeza

Aquela tão escassa
Perdida e opaca
Que se perde na fumaça
Preta, branca ou laica

Nas filas dos coletivos
No pregão financeiro
Nos semáforos rubros ou olivos
Com aquele que te pede dinheiro

Deixar passar
Por alguém esperar
Oferecer um olhar
Estender a mão
Ajudar a levantar

Gestos tão simples
Não custam tostão
Mas valem sorriso
E fazem bem a um coração.

sexta-feira, março 08, 2013

Caso do vestido

Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?


Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.


Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?


Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.


Nossa mãe, dizei depressa
que vestido é esse vestido.


Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.


O vestido, nesse prego,
está morto, sossegado.


Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!


Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.


Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.


E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós, 


se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou,


chorou no prato de carne,
bebeu, brigou, me bateu,


me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,


mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou.


Dava apólice, fazenda,
dava carro, dava ouro, 


beberia seu sobejo,
lamberia seu sapato.


Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,


me pediu que lhe pedisse,
a essa dona tão perversa,


que tivesse paciência
e fosse dormir com ele...


Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.


Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio.  Disfarcemos.


Nossa mãe, não escutamos
pisar de pé no degrau.


Minhas filhas, procurei
aquela mulher do demo.


E lhe roguei que aplacasse
de meu marido a vontade.


Eu não amo teu marido,
me falou ela se rindo.


Mas posso ficar com ele
se a senhora fizer gosto,


só pra lhe satisfazer,
não por mim, não quero homem.


Olhei para vosso pai,
os olhos dele pediam.


Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.


O seu vestido de renda,
de colo mui devassado, 


mais mostrava que escondia
as partes da pecadora.


Eu fiz meu pelo-sinal,
me curvei... disse que sim.


Sai pensando na morte,
mas a morte não chegava.


Andei pelas cinco ruas,
passei ponte, passei rio, 


visitei vossos parentes,
não comia, não falava,


tive uma febre terçã,
mas a morte não chegava.


Fiquei fora de perigo,
fiquei de cabeça branca,


perdi meus dentes, meus olhos,
costurei, lavei, fiz doce,


minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram,


minha corrente de ouro
pagou conta de farmácia.


Vosso pais sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.


Um dia a dona soberba
me aparece já sem nada,


pobre, desfeita, mofina,
com sua trouxa na mão.


Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,


que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido, 


última peça de luxo
que guardei como lembrança


daquele dia de cobra,
da maior humilhação.


Eu não tinha amor por ele,
ao depois amor pegou.


Mas então ele enjoado
confessou que só gostava


de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas,


fiz toda sorte de dengo,
no chão rocei minha cara,


me puxei pelos cabelos,
me lancei na correnteza,


me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,


bebi fel e gasolina,
rezei duzentas novenas,


dona, de nada valeu:
vosso marido sumiu.


Aqui trago minha roupa
que recorda meu malfeito


de ofender dona casada
pisando no seu orgulho.


Recebei esse vestido
e me dai vosso perdão.


Olhei para a cara dela,
quede os olhos cintilantes?


quede graça de sorriso,
quede colo de camélia?


quede aquela cinturinha
delgada como jeitosa?


quede pezinhos calçados
com sandálias de cetim?


Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.


Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.


Ela se foi de mansinho
e já na ponta da estrada


vosso pai aparecia.
Olhou pra mim em silêncio,


mal reparou no vestido
e disse apenas: — Mulher,


põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,


comeu, limpou o suor,
era sempre o mesmo homem,


comia meio de lado
e nem estava mais velho.


O barulho da comida
na boca, me acalentava,


me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito


de que tudo foi um sonho,
vestido não há... nem nada.


Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.



Carlos Drummond de Andrade
"Nova Reunião - 19 Livros de Poesia", José Olympio Editora - 1985, pág. 157.

sexta-feira, fevereiro 22, 2013

Não tá fácil pra ninguém


- Tá boa a água?
- Tá ó-ti-ma, amiga! Mas a frequência aqui no Country não é mais a mesma, né?
- É mesmo. Caiu demais o público.
- Outro dia mesmo chegou um pessoal da zona norte que trouxe o rádio, as mulheres começaram a passar blondon e as crianças comendo fandangos. Ficou tudo sujo em volta.
- Aff... Deu na Vejinha que os lugares onde tem ponto final de ônibus são os mais poluídos.
- E os arrastões?
- Pode crê. O Rio tá foda.
- É, mas tá mudando. O Cabral e o Paes tão colocando ordem nisso aqui. E o Eike também.
- Pode ser, mas eu queria mesmo viajar. Alguma ideia?
- Búzios já tá muito favelado. No Brasil, o melhor é Trancoso. Um sonho!
- Ah, não, queria ir pra fora.
- Ano passado fui pra Varadero, conhece?
- Não, onde fica?
- Cuba, bobinha... rsrsrsrs
- Ah, não, deus me livre, a terra daqueles barbudos comunistas... viu aquela menina que veio pro Brasil? Disse que lá não tem liberdade de expressão, uma coisa horrível. Imagina isso aqui? Tirar o Jornal Nacional do ar, proibir a Veja de circular? É o que tão tentando fazer na Argentina... que medo!
- Isso é verdade. Mas Varadero é ótimo! Tem excelentes resorts, tudo all inclusive. Só não vai pra Havana... muita pobreza, gente pedindo dinheiro na rua...
- E Paris?
- Paris tá o ó. Não dá mais. Depois dos peixe urbanos da vida, os aviões vivem lotados da tal da classe “c”, atraso bagarai...
- Foi o Lula que fez isso, né? Bem que eu votei naquele outro, o... ah, já esqueci.
- Aécio?
- Isso!
- E os hotéis de Paris? Muito hotelzinho chinfrim, caindo aos pedaços, elevador que só entra uma pessoa, mas a mala fica.
- Péssimo, né?
- E aquele seu amigo, que sempre tem boas dicas de lá, tá no feice?
- Tá sim, procura lá no meu perfil e adiciona.
- Peraí que eu entro aqui agora... foi!
- Então, o negócio é ficar em rede de hotel americano. Procura o Sofitel Le Faubourg. Não tem erro. Tudo limpinho, arrumadinho, café da manhã maravilhoso, do lado da Champs Elysées...
- Que máximo! Já vou curtir.
- Vou entrar aqui pra dar uma curtida também.
- ...
- ...
- E hoje à noite, qual é a boa?
- Não sei ainda, a náite do Rio tá muito fraca, só mulher e viado. Não tem mais homem solteiro e bonito não. E rico então, nem se fala... hauhauahauahau...
- Hauhauahauahau...
- E a lei seca?
- Tá foda, né? Não tão aliviando nem quem tem dinheiro.
- É, tá difícil mesmo.
- Ah, já sei. To vendo uma aqui no feice que tá bombando, todos os amigos tão curtindo, é perto e dá pra ir de taxi.
- O quê?
- Samba no Dona Marta, já ouviu falar?
- Na favela? Mas é seguro?
- Claro! Não sabe que lá tá com UPP agora?
- Sei... e não vai gente do morro não?
- Nada, só gente bonita, aqui de baixo. Tem até um conhecido do primo de um amigo meu, que eu já dei uns pegas que pode botar a gente pra dentro. Partiu?
- Partiu!

domingo, fevereiro 17, 2013

Fim de carnaval


De que vale o sol brilhante
A areia escaldante
A onda beijando a rocha
O sorriso da cabrocha

Para que o chope gelado
O abraço apertado
O gol marcado
Na final do campeonato

Não me venha com batucada
Odalisca ou colombina
À frente da bateria
Na garagem ou na escada

Sair junto pra passear
Calçadão ou mesa de bar
Jantarzinho a dois
Motel e cigarrinho depois

Se a alegria não mais está comigo
A saudade já ganhou abrigo
A tristeza se apoderou de mim
E a solidão foi o que restou
Enfim.


Ciço Pereira
17/02/2013.