quarta-feira, novembro 01, 2006

La guagua

Para ir da Universidade à casa de Soledad era preciso esperar la guagua (la uaua, como dizem), nada menos que o transporte coletivo dos habitantes de Havana, cuja passagem custa MN 0,40. Outra opção é ir de camelo (MN 0,10), um ônibus de design muito ultrapassado, importado da antiga União Soviética, espécie de Lada de 48 lugares com duas corcovas no teto do veículo.

Viajar de guagua é uma aventura inesquecível para qualquer estrangeiro que vá a Havana. Além do cuidado com os bolsos traseiros, o aperto no interior do veículo, há que se esperar para embarcar. E como. Uma espera de uma hora, uma hora e meia é lucro. Soledad contava que saía de casa às 4h30 para estar na Universidade às 8h. Não levava a sério até ser convidado a ir a Cojimar. Cheguei ao ponto de ônibus às 10h da manhã e cheguei a sua casa às 15h. Descontando a hora de duração da viagem, calculo que esperei no ponto por quatro horas.

Mas em Havana tudo é surpreendente. Foi justamente neste dia que conheci uma pessoa que marcou minha estada na cidade e no modo como passei a ver o povo cubano. Sentado no ponto, puxei conversa com uma moça. Maria estava grávida de oito meses. Enfermeira desempregada levava nas mãos uma pasta. Era para o marido, um arquiteto igualmente sem trabalho. Estivera em Vedado, bairro central da capital, para buscar com amigos uma pasta na qual o esposo organizaria seu portfólio e buscaria emprego a partir de então.

Apesar do panorama absolutamente desfavorável, a criança que carregava no ventre fazia Maria acreditar demais na felicidade de seu casamento, seus planos futuros e sua felicidade. Jamais maldisse a sorte. Apenas demonstrou desejo de buscar emprego em outro país, onde acreditava poder exercer o seu ofício e garantir o sustento do rebento. Jamais entretanto, desprezou seu país, sua pátria, seu povo, seu comandante-em-chefe. Quando perguntei se acreditava que o país estaria melhor sem Fidel, limitou-se a dizer, “não posso responder esta pergunta”. Sem entretanto deixar claro se por censura ou por desconhecer o dia de amanhã.

Talvez pela esperança de melhores dias em uma nova terra, tenha escrito seu endereço em meu caderno de anotações. Mas não creio que o que vou relatar a seguir tenha sido fruto de interesse oportunista. Depois de quatro horas de espera e muita conversa, finalmente la guagua chegou. Dispensando a gratuidade que seu estado interessante lhe garantia, Maria solidariamente pagou a passagem.

Embarcamos no veículo buscando espaço entre os passageiros que lá dentro já se encontravam. Polidamente, um deles cedeu o lugar para que Maria se sentasse. Esperei em pé ao seu lado. Avisou que deveríamos descer próximo à Rodoviária, onde o ônibus faria o ponto final, para aí então tomar o próximo coletivo. Disse que, tudo bem, mas que ela não precisava fazer o mesmo, pois gozava deste privilégio.

Maria ignorou-me, correu em desabalada carreira os cerca de 300 metros com sua protuberante barriga sob o sol da meia estação cubana e ainda me apressava aos gritos de apurate, apurate. Ao alcançarmos o ponto de ônibus onde eu deveria embarcar, ainda acotovelou-se com os demais passageiros, que não lhe garantiam uma entrada tranqüila no veículo, e ainda resistiu que pagasse a sua passagem, o que, obviamente, fiz questão de fazer.

Tal atitude deixou perplexo o brasileiro nascido e criado no país do "salve-se quem puder", do "jeitinho" e dividido entre malandros e otários. Não sei se o maior ato de generosidade que jamais vi na vida pode ser considerado normal em um país em que nadie tiene nada, segundo palavras da própria Maria, e por isso um gesto de doação, mesmo em benefício a um estranho é visto como “nada mais que obrigação” para um povo que aprendeu a ser solidário.

O fato é simplesmente que fiquei deveras constrangido e sem reação para responder a tamanha gentileza. Tanto que, descemos juntos, mas nos separamos algumas ruas depois. A moça entrou por uma rua de terra batida e sumiu por entre as vielas de Cojimar. Com a agenda atribulada, não pude visitá-la, nem sequer levar uma reles lembrança para a criança que viria ao mundo. Nunca mais a vi e jamais pude retribuir o carinho que Maria teve comigo. Hoje, repleto de remorso, encontro consolo em minhas preces, nas quais rogo para que tudo dê certo para ela, seu marido e seu filho.

Um comentário:

Anônimo disse...

Adoro ler os textos do manifestoplural e fico esperando quando virá o próximo. Sejam os escritos pelo Ciço, ou os que ele seleciona, a qualidade é sempre excelente, além da propriedade de estarem dentro da mesma natureza da prosa ou poesia.
Esse ritmo lírico, que alterna os textos, encanta e deixa o lamento de não tratarem do meu Rio de Janeiro.