quinta-feira, dezembro 21, 2006

O poeta que sacaneia o mundo


Zeh Gustavo é a multiplicidade em sua essência. Diversos homens em um só. Poeta, músico, revisor, jornalista cultural, sindicalista, boêmio, entre outras coisas, não necessariamente nessa mesma ordem. Nasceu depois que Gustavo Dumas, autor do Mito da origem do futebol (Ed. Cone Sul, 1997) e O povo e o populacro (Ed. Cone Sul, 1998), escreveu Solturas, balões e bolinhas de papel (Damará, 2001) e lançou seu primeiro livro, Idade do Zero (Escrituras Editora, 2005). “O Dumas é (um pouco) mais formal, assina artigos bravos, faz política sindical, corre na frente. O Zeh é um vagabundo que canta samba-de-breque, fanfarreia, traga um sem-número de copos de boa pinga por noite, usa chapéu de malandro – como se um deles fosse”, explica. Mas, a (aparente) dualidade entre Zeh Gustavo x Gustavo Dumas é um alimento de si mesma. “Sem o Gustavo não existiria o Zeh, pois preciso dos elementos do mundo de um para dar vida ao outro”.

Origens

A trajetória literária de Gustavo Dumas teve início com a leitura de notícias de esporte e política nas páginas dos jornais, de onde se inspirou para escrever redações no colégio. À sombra das chuteiras imortais, de Nelson Rodrigues, foi o primeiro livro espontaneamente lido, presente dado pelo tio. Foi também do genial escritor, jornalista e dramaturgo o primeiro livro comprado por Dumas: O casamento, lembra. De Nelson, Dumas vê ainda outras similaridades. “Minha família era muito pobre e a questão principal era sobreviver. Mas sobreviver com certa pompa farsesca. A família de Nelson passava fome mas não se mudava de Copacabana”. Além disso, ambos tinham em comum o (mau)* gosto futebolístico de torcer pelo tricolor das Laranjeiras, como faz questão de frisar o autor.

Emociona-se ao lembrar da infância. “A sensibilidade e o sentimento de luta foram marcantes. Isto entrou na minha visão de mundo e influencia diretamente, não só na minha poesia, como em qualquer atividade que exerço hoje. Quero, no mínimo, sacanear o mundo”. E volta a lembrar do tio. “Foi a figura paterna mais presente em minha vida, o principal personagem boêmio-intelectual da minha família”. Do pai, diz apenas que está vivo, “por aí”, mas não volta a tocar no assunto. Dele fala em Família tipo assim, poema de Idade do Zero:

Meu pai sagrou-se um grave Estabelecedor de Réguas.
Tinha desajeitamentos pois que algumas réguas entortavam contrasigo mesmo.
Viveu bastante, como dizem.
Com o tempo foi tornado cabeça dura para modo de agüentar as próprias réguas que ele criara
.

Hoje, admite-se desiludido e mais maduro. “Não tenho mais a raiva que tinha antes. Agora vejo o humor como a melhor maneira de agredir. Sinto-me cansado mas não perco a ternura jamais!”.

Poesia Práxis


Zeh Gustavo é um dos novos e bons valores da poesia práxis, surgida no Brasil em 1962, com a publicação de Lavra lavra, de Mário Chamie. Nas palavras da crítica Nelly Novaes Coelho, Chamie “faz da poesia um ato imperativo que incita ao 'fazer'. Assume o 'tempo presente' e o 'homem' que nele vive. Finca os pés no 'espaço concreto' onde a vida se cumpre”. Superficialmente falando, a poesia práxis chega para se opor ao concretismo, movimento de destaque na década de 50, valorizando o conteúdo em detrimento da forma. Outro expoente da poesia práxis é Cassiano Ricardo. E é justamente Mário Chamie quem assina o prefácio de Idade do Zero:

Considerando-se “alguém”, o poeta veio a entender que “o nosso tempo é um estágio zero”, feito de “desacontecimentos acelerados”, em todas as suas instâncias de realidade (a rua, a casa, a família, o poder, o estado, o trabalho). Movido por esse entendimento, faz, então, sua opção negativa, ou seja: nega o sistema de afirmação de si mesmo: “Optei: não ser”. Leia-se: optou não ser refém da maquiagem do tempo, escolheu não anular-se na aporia que reside na “palavra sem liguagem”, e resolveu não submeter-se às “formas desvalidas” que promovem o fetiche cego do chamado “dinamismo produtivo” de nossos dias.

Os primeiros quatro livros escritos pelas mãos de Gustavo Dumas seguem “uma percepção de circularidade do mundo”, como ele mesmo define. Para o próximo – que tem como título provisório A perspectiva do quase - Zeh anuncia uma mudança: “Numa sociedade objetiva, em que o que conta é o produto acabado, o quase é uma forma de perturbar essa hegemonia”, diverte-se. “Não estou negando o produto acabado. Mas acho que o quase é o que há de mais belo: o ator um minuto antes de entrar no palco, o breve momento antes do ‘pegar na mão’, o olhar instantes antes do primeiro beijo, aí é onde reside a beleza da vida”, regozija-se.

Idade do zero

Em 2005, Zeh Gustavo veio à luz em Idade do Zero, colocando para fora a poesia marginal, a troça, o humor e – mais uma vez – o irresistível desejo de sacanear o mundo: “Mudar o mundo é ingenuidade. O humor é a melhor maneira de agredir”. Idade do Zero fala sobre a relação esquizofrênica entre o homem urbano e o mundo moderno. Subversor e contestador, o poeta chega para dar vida à subjetividade perdida nas convenções da contemporaneidade. Neste contexto, se define como um “dessujeito”, como transparece no poema Prostituto da palavra:

Costumo me ater a funções durante o dia
As funções me isolam um pouco de minha disfunção
Elas me deitam impotente
Naquele corre-corre obsessivo
Minha farsa é de plástico
Transita depois anormalmente para o nada


Para ele, o duelo homem x urbanidade não é de hoje “No início do século XX, Machado, Baudelaire e Chaplin já falavam sobre isso. Havia campanhas populares para que não se jogasse merda na rua”, cita. Hoje em dia, cada vez mais, a redenção vem através do consumo. “O capitalismo elimina a subjetividade e, ao mesmo tempo, oferece soluções mágicas, incrivelmente rápidas para o próprio efeito que causa”.

Olhando em volta, Zeh encontra sinais desta decadência. “Temas que deveriam ser o ponto de partida para debates e ações de todos os segmentos da sociedade são transversais, como a ecologia e a cultura, por exemplo”. Saída? “Nossa responsabilidade é resgatar, através da arte, da imprensa, da política, esses temas para que eles venham para o centro das discussões”, aponta.

Outra discussão que o poeta traz à tona é a busca pelo conhecimento em uma sociedade cada vez mais hedonista. “As universidades trabalham como vetores de treinamento e domesticação para o mercado. O resultado disso é a formação de uma elite sem formação intelectual”. E, desta vez, atira para cima da imprensa. “A mídia é um instrumento deste sistema. A tendência do jornalismo é nivelar por baixo. Vejam o crescimento cada vez maior dos jornais ditos populares, que atendem a pessoas emburrecidas. Neles, a opinião é a falta de opinião. E os grandes jornais seguem o mesmo caminho”, dispara.

Mercado literário

Zeh diz que não ambiciona viver de poesia. “Apenas deixar de ter prejuízo com ela”. E tenta explicar por quê. “Dentro do produto livro, a literatura é marginalizada; e dentro do produto literatura a poesia assim também o é”. Causas? “A poesia vem operar os inconscientes do mundo da linguagem e, para uma sociedade que não entende nem mesmo o consciente, como entender o inconsciente?”.

Mas dentro desta mesma sociedade, como deve operar a poesia? “Na contemporaneidade, a poesia esqueceu o eu e, com isso, tenta mascarar a sua subjetividade”. Zeh admite o papel social da poesia, mas sem que isto seja a razão de sua existência. “A poesia precisa se comunicar enquanto ente social, mas não ter isto como sua causa. Eu não acredito no produto artístico que tente, propositadamente, agradar a outrem. Isto não é objeto artístico, não é honesto”.

Ofício de escrever

Mas então o que leva alguém a ser artista? Por que se aventurar em um ofício o qual “a sociedade capitalista não reconhece como trabalho”, como ele mesmo admite? “Em alguns concursos literários, há a explicação de que a ‘preocupação é cultural’, o que significa que não há premiação em dinheiro. Isto me incomoda muito. A cultura é um trabalho e, como tal, deve ser, sim, remunerado pela sociedade capitalista em que vivemos”. O reconhecimento que o artista busca talvez venha de outra natureza. “Todos querem o aval do público, o que não quer dizer escrever para agradar”. Para ele, “a obra literária busca o diálogo e o pior escritor é aquele que fecha a sua obra”.

Zeh Gustavo admite que para se obter este reconhecimento, é preciso fazer concessões. Talvez a primeira seja a auto-censura. “Também tenho a capacidade de pensar politicamente”. Como escritor contratado de uma editora, também precisa treinar a sua tolerância. “Não dou o braço a torcer em determinadas coisas como, por exemplo, trocar uma palavra por outra sugerida, por que isto é uma questão de autoria”. Mas ele reconhece que a troca de opiniões também pode ser importante. “Também não dou uma banana, pois o olhar do editor é também o olhar do leitor”.

Música

Por falar em reconhecimento, a música, talvez “pela resposta rápida que se tem do público”, seja o ofício que mais agrade a Zeh Gustavo. É notável o prazer do poeta em falar da atividade, da qual se considera “um intuitivo”. “Faço música de maneira amadora no melhor e no pior sentido. Nada substitui o canto no chuveiro, o batuque numa mesa de bar”. Para ele, o que acontece hoje é o que chama de fenômeno da inversão. “Antes, numa roda de samba, os compositores mostravam suas músicas, cantavam, brincavam, versavam. E aí uma ou outra música ‘pegava’, caía no gosto. Depois, podia ou não ir para o rádio e tocar, fazer sucesso. Hoje a música precisa ser gravada por algum famoso, precisa passar pelo constrangimento do jabá, ‘pegar’ no gosto do público para depois entrar no repertório dos músicos de uma roda de samba”. Assume-se assim como um nostálgico e faz apologia do amadorismo “sem cerimônias”. “Precisamos de um mínimo de sentimento de amadores para fazermos arte, senão tudo perde o seu sentido original. No amadorismo a arte é mais levada a sério”.

Como poeta, o sambista de breque também critica a falta de compromisso com as letras. “Percebo que, na ânsia por querer agradar e vender o seu produto, o músico deixa de experimentar em busca de fórmulas prontas já aceitas por um mercado, no melhor estilo ‘se está bom, deixa como está’”.

Com formação acadêmica em letras e pós-graduado em jornalismo cultural, Gustavo Dumas deu vida ao moleque Zeh, que busca apenas a essência. Com isso, o sambista de breque esbarra em obstáculos vindos de sua falta de academicismo no terreno musical. “Eu mostro minha música e os músicos me perguntam coisas para eles simples: ‘que nota é essa aqui? qual o tom?’. E eu não sou músico, definitivamente, e nunca paro muito pra pensar nisso não, pra mim é secundário, mas não é”. Com intuição, encontra soluções estéticas para os problemas. “Sou artesão, trato os sons sem me preocupar com o nome que eles levam, trato-os qual palavras, com uma diferença fundamental de que o alfabeto e a gramática dos sons eu não domino”. Mas nem por isso se acanha. “Entendo quando os músicos me fazem cara feia. Porém não vou deixar de fazer música por causa deles! Nossos maiores compositores populares não tinham uma boa formação escolar. Eu não tive uma boa formação musical e componho”, afirma desavergonhadamente. E aponta qual caminho está seguindo. “Tenho uma visão primitiva da música. Penso que o artista começa a experimentar para, ao final, chegar ao simples”.

Processo criativo

O poeta recorre a um conceito de arte para explicar sua forma de criar. “A arte é o transporte de um lugar para o outro. Por isso escrevo no ônibus, na barca, indo e vindo de Niterói”. Para transpor para o papel tudo o que seus instintos apreendem, Zeh Gustavo observa. “A observação é uma contemplação atuante. É preciso tornar o mundo uma obra artística, ler o que está escrito na sua frente, mesmo sem que isto esteja explícito. Eu gosto quando as minhas loucuras emergem de alguma coisa que está na minha frente. Procuro enxergar as potencialidades de cada imagem, mesmo que a arte esteja escondida lá no fundo do quadro. A arte repete os vícios loucos da natureza”.

Futuro da arte

Sobre o futuro, ele crê em Andy Wahrol, para quem todos terão 15 segundos de fama. “Vai haver dificuldade de surgir verdadeiros artistas, populares no sentido de hoje, com enormes fã-clubes, como Roberto Carlos, Chico Buarque, Caetano Veloso, por exemplo. A tendência é a da fragmentação”. Zeh credita este fator ao mundo com informações cada vez mais rápidas e perecíveis. “A internet não confere o aval de ‘bom’ que todo artista ambiciona. Sua origem é anárquica. O que é seu grande trunfo é também seu grande problema, pois o conteúdo assimilado pelo público é muito pequeno”. E explica os motivos que o levam a continuar escrevendo. “Tenho uma doce pretensão: a de escrever o que eu tenho que escrever. Isso vai fazer com que um dia eu pare de escrever ou escreva o mesmo de outras formas”.


* observação de caráter meramente pessoal do editor deste blog

quarta-feira, dezembro 13, 2006

CAVEIRÃO NA ZONA SUL

Recém eleito deputado estadual para a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro pelo PSOL, Marcelo Freixo participou do 12º Curso Anual do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), que aconteceu do dia 30 de novembro a 3 de dezembro, no prédio da Funarte, no Centro do Rio. No encontro foi discutida a relação da Mídia com o Estado, de que maneira os veículos de comunicação contribuem para a manutenção da ordem aí estabelecida e as maneiras para se resistir a isso. Representantes de sindicatos e organizações de todo o país voltaram às suas localidades com algumas dicas importantes de como se criar meios de comunicação que venham como alternativa para o pensamento único imposto pelos jornalões, tvs e rádios dos grandes impérios de imprensa deste país.

Freixo participou da mesa A pauta que a imprensa popular e a sindical precisa, mas falou mesmo sobre Direitos Humanos, sua bandeira mais constante. Professor de História, Freixo é consultor do assunto do deputado federal Chico Alencar e pesquisador da ONG Justiça Global. Em quase 20 anos de trajetória, coordenou projetos educativos no sistema penitenciário, presidiu o Conselho da Comunidade da Comarca do Rio de Janeiro, esteve à frente da Comissão de Direitos Humanos da ALERJ e participou do caso do fechamento da Polinter e da campanha contra o “Caveirão”, em parceria com a Anistia Internacional. Filiado ao PT desde 1986, mudou de partido em 2005 quando foi criado o Partido do Socialismo e Liberdade.

Para Freixo, atualmente, o debate dos direitos humanos é um instrumento de transformação social fundamental. “O eixo da luta de classes mudou do portão da fábrica para a entrada da favela. Violência não é só a criminalidade, mas tudo aquilo que fere a dignidade humana”, sentenciou. Ele lembrou que, diariamente, 132 pessoas são assassinadas no Rio de Janeiro – números superiores a qualquer guerra em curso em todo o mundo - e citou o brutal assassinato da socialite Ana Cristina Johanpeter em uma esquina do Leblon por um menor. O deputado, porém, ressaltou que, no mesmo dia, três adolescentes foram assassinados por policiais dentro de um caveirão. “Por que esta notícia não saiu na imprensa?”, questionou, para em seguida, provocar: “não estou aqui defendendo o extermínio de socialites”, no que foi seguido de algumas palmas.

Freixo rebateu as alegações de facções criminosas de que o tráfico é uma forma de contestação social. “O tráfico é necessário para o poder dominante para se manter a lógica capitalista. Não interessa a ele acabar com o tráfico. Por isso toda manifestação de indignação da classe dominante com o que está por aí é hipócrita”. Para ele, o dever da mobilização é de todos. “Todos nós, não só toleramos essa barbárie, como também a legitimamos”. Segundo estatísticas apresentadas por Freixo, 57% dos meninos que ingressam no tráfico têm entre 13 e 15 anos, 46% deles compram roupas com a venda de drogas, 49% saem do tráfico para ganhar mais dinheiro em outras atividades, números que expressam ainda mais a lógica capitalista do negócio.

Polêmico, Freixo bateu forte na política de segurança pública estabelecida pelo clã Garotinho: “O Estado é inimigo da população”. Citou a chamada “polícia mineira”, milícias formadas por policiais civis e militares e bombeiros que operam nas comunidades carentes, dizendo levar a ordem a esses locais, eliminando o tráfico, mas achacando, extorquindo e impondo terror igual ou pior ao exercidos pelos traficantes. “Quem fumar um baseado na rua morre”, disse. Outro alvo de Freixo foi o caveirão, veículo blindado negro com auto-falantes, utilizado oficialmente pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro que reprime não apenas os traficantes, mas todos os moradores das comunidades por onde entra. “O caveirão entra na favela dizendo: ‘eu vim aqui para levar a sua alma’, ‘trabalhador eu varro com a ponta do fuzil’”. E fez, meio em tom de pilhéria, meio sério, duas propostas: “a de que um dia os moradores da favela não desçam para trabalhar no asfalto e a de que o caveirão passe um dia na Vieira Souto dizendo o que diz nas favelas. As mães de Ipanema e Leblon sairiam de branco em passeata e o William Bonner e a Fátima Bernades apareceriam chorando à noite no Jornal Nacional”.

Questionado sobre como levaria o debate dos direitos humanos à Alerj, casa do Legislativo fluminense responsável pela maior “bancada” de sanguessugas, fez um apelo: “Convoco a todos para lotar o auditório da Alerj para reivindicar nossos direitos e brigar por uma política de direitos humanos mais justa”. Sobre os futuros colegas parlamentares, analisou: “existem cinco deputados que brigam pelas mesmas causas que eu”. Sobre os inimigos enumerou: “Álvaro Lins, Wagner Montes, Jair Bolsonaro e seus filhos, Jorge Babu, que é ligado grupos de extermínio, entre outros”, apontou.

De Atenas a Acari pela ponte da poligamia


No mesmo dia foi a vez do antropólogo e historiador Marcos Alvito falar sobre A pesquisa como ferramenta de comunicação. Alvito subiu à mesa aplaudido e começou falando sobre a tese de doutorado inconclusa sobre “As mulheres de Atenas”. O acadêmico estava no Mediterrâneo investigando por que na Grécia Antiga, o adultério não era crime em Esparta, mas sim, o era em Atenas. Alvito descobriu que, como Esparta era um Estado belicista, os guerreiros mais poderosos tinham o pleno direito de reivindicar as belas esposas dos cidadãos comuns para se reproduzirem e perpetuarem uma espécie mais forte, continuando assim, a sua prole de guerreiros. Já em Atenas, o adultério era punido severamente. “O Cornudopoulos levava o Ricardopoulos para praça pública completamente nu e com um vegetal de duplo sentido enterrado... aí mesmo onde vocês estão pensando”, relatou.

Mas Alvito desistiu de sua tese no meio do caminho e voltou para o Brasil. Mais especificamente para Acari, Rio de Janeiro. Ele decidira mudar radicalmente o foco de sua pesquisa para os presos da Penitenciária Lemos de Brito, localizada naquele bairro. O resultado deste trabalho está no livro “As cores de Acari”. O pesquisador, entretanto deparou-se com uma similaridade entre a Grécia e Acari. Não, não foi a beligerância dos soldados de Esparta e os traficantes do subúrbio carioca. Mas sim, o tema da poligamia.

Durante oito anos, reinou na favela o super-traficante Jorge Luiz. Ele era considerado um mito por moradores, inimigos e polícia justamente pelo tempo que se manteve no controle do tráfico na comunidade. Ninguém sabia ao certo a origem de seu poder. Lendas inúmeras havia sobre ele e Alvito decidiu investigar. Logo ele, um branquinho da zona sul do Rio de Janeiro e intelectual da Universidade Federal Fluminense. Infiltrara-se na favela e passava os dias observando e fazendo parte do dia-a-dia dos moradores. “No começo, percebi que a minha presença incomodava, aos poucos, passei a ser tolerado até ser completamente aceito por todos”, disse.

Alvito conversava com os moradores, tomava cerveja e jogava bola com os moradores. Ouvia muito falar sobre Jorge Luiz, mas nunca o havia visto. O boato mais comentado era que o traficante tinha 30 filhos de 12 esposas. A imprensa noticiava esses fatos aos quatro ventos quando se referia ao super-bandido, glamourizando o crime e sustentando todo um folclore com certa dose de romantismo por trás de tudo isso. Certa feita, Alvito foi convidado para um churrasco financiado por Jorge Luiz. Lá ele conheceu um amigo muito próximo do meliante que lhe mostrou algumas contas do tráfico de drogas na comunidade: R$ 20 mil eram gastos com os seus supostos filhos. Então quer dizer que os 30 filhos são mesmo dele, perguntou Alvito. Ele nem mesmo tem certeza se metade deles são mesmo seus, mas os sustenta assim mesmo, respondeu.

Foi então que o professor se deu conta da origem de todo o poder de Jorge Luiz. Com 30 filhos, 12 esposas, 12 sogras, algumas dúzias de cunhados, irmãos e primos, o bandido controlava toda a comunidade. Seus “parentes” exerciam o papel de cobradores do tráfico, exigindo as “contribuições” dos moradores e o avisavam quando da chegada da polícia ou de alguma facção inimiga na favela. Alvito, como historiador e antropólogo, saiu-se muito melhor do que todos os repórteres que, em vão, tentaram contar a história de Jorge Luiz, reproduzindo e disseminando ainda mais os mitos existentes em Acari.

Depois de contar essas e outras histórias salpicadas de humor e inteligência, ganhando assim o público, Alvito, entretanto, deixou o auditório da Funarte em maus lençóis. Isso por que, em uma resposta qualquer, declarou-se “não de esquerda, nem de direita, nem de centro, mas sim, um pesquisador”. Em meio a sindicalistas que, minutos antes ouviam o hino da Internacional Socialista, disse que “a esquerda mente tanto ou mais que a direita”, falou mal de Cuba e do regime castrista e ainda chamou Chávez de ditador, provocando burburinhos, pigarros e coçadas incessantes de cabeças na platéia. Ao ouvir suas palavras, uma integrante do corpo diplomático venezuelano levantou-se da poltrona e dirigiu-se até o microfone. Em espanhol mesmo, fez a defesa – apaixonada e igualmente brilhante, por sinal - de seu presidente, de seu regime e da democracia em seu país, terminando aplaudida por todos.

Foi o melhor momento do evento por ter gerado uma inesperada discussão de idéias e um debate entre dois pensamentos antagônicos, coisa que pouco se vê nos grandes veículos de comunicação ou mesmo se viu antes ou depois da palestra de Alvito, no decorrer do evento. Uma pena que o coordenador do NPC, Vitto Gianotti não permitiu a réplica do palestrante convidado, dando por encerrada a discussão nas palavras da consulesa. E, no cd-player, voltou a soar: “De pé, ó vitimas da fome /De pé, famélicos da terra/ Da idéia a chama já consome/ A crosta bruta que a soterra”...

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Breve meditação sobre um retrato de Che Guevara

Não importa que retrato. Qualquer um: sério, sorrindo, de arma em punho, com Fidel ou sem Fidel, discursando nas Nações Unidas, ou morto, com o dorso nu e olhos entreabertos, como se do outro lado da vida ainda quisesse acompanhar o rastro do mundo que teve de deixar, como se não se resignasse a ignorar para sempre os caminhos das infinitas crianças que estavam por nascer. Sobre cada uma dessas imagens poder-se-ia discorrer profusamente, de um modo lírico ou de um modo dramático, com a objetividade prosaica do historiador ou simplesmente como quem se dispôs a falar do amigo que percebe ter perdido porque o não chegou a conhecer.

Ao Portugal infeliz e amordaçado de Salazar e de Caetano chegou um dia o retrato clandestino de Ernesto Che Guevara, o mais célebre de todos, aquele feito com manchas fortes de negro e de vermelho, que se converteu em imagem universal dos sonhos revolucionários do mundo, promessa de vitórias a tal ponto fértéis que nunca poderiam se degenerar em rotinas nem em cepticismos, antes dariam lugar a outros muitos triunfos, o do bem sobre o mal, o do justo sobre o injusto, o da liberdade sobre a necessidade. Emoldurado ou fixo na parede por meios precários, esse retrato assistiu a debates políticos apaixonados na terra portuguesa, exaltou argumentos, atenuou desânimos, acalentou esperanças. Foi visto como um Cristo que tivesse descido da cruz para descrucificar a humanidade, como um ser dotado de poderes absolutos que fosse capaz de extrair de uma pedra a água com que se mataria toda a sede, e de transformar essa mesma água no vinho com que se beberia ao esplendor da vida. E tudo isto era certo porque o retrato de Che Guevara foi, aos olhos de milhões de pessoas, o retrato da dignidade suprema do ser humano.

Mas foi também usado como adorno incongruente em muitas casas da pequena e da média burguesia intelectual portuguesa, para cujos integrantes as ideologias políticas de afirmação socialista não passavam de um mero capricho conjuntural, forma supostamente arriscada de ocupar ócios mentais, frivolidade mundana que não pôde resistir ao primeiro choque da realidade, quando os fatos vieram exigir o cumprimento das palavras. Então, o retrato do Che Guevara, testemunha, primeiro, de tantos inflamados anúncios de compromisso e de ação futura, juiz, agora, do medo encoberto, da renúncia covarde ou da traição aberta, foi retirado das paredes, escondido, na melhor hipótese, no fundo de um armário, ou radicalmente destruído, como se fosse motivo de vergonha.

Uma das lições políticas mais instrutivas, nos tempos de hoje, seria saber o que pensam de si próprios esses milhares e milhares de homens e mulheres que em todo o mundo tiveram algum dia o retrato de Che Guevara na cabeceira da cama, ou na frente da mesa de trabalho, ou na sala onde recebiam os amigos, e que agora sorriem de terem acreditado ou fingido acreditar.

Alguns diriam que a vida mudou, que Che Guevara, ao perder sua guerra, nos fez perder a nossa, e portanto era inútil ficar a chorar, como uma criança, o leite derramado. Outros confessariam que se deixaram envolver por uma moda da época, a mesma que fez crescer barbas e alargar as melenas, como se a revolução fosse uma questão de cabeleireiro. Os mais honestos reconheceriam que lhes dói o coração, que sentem nele o movimento perpétuo de um remorso, como se a sua verdadeira vida tivesse suspendido o curso e agora lhes perguntasse, obsessivamente, aonde pensam ir sem ideais nem esperança, sem uma idéia de futuro que dê algum sentido ao presente.

Che Guevara, se tal se pode dizer, já existia antes de ter nascido. Che Guevara, se tal se pode afirmar, continuou a existir depois de ter morrido. Porque Che Guevara é só o outro nome do que há de mais justo e digno no espírito humano. O que tantas vezes vive adormecido dentro de nós. O que devemos acordar para conhecer e conhecer-nos, para acrescentar o passo humilde de cada um ao caminho de todos.


José Saramago

sábado, dezembro 09, 2006

Pão e circo


Mas as pessoas da sala de jantar são ocupadas em nascer e morrer...

Inocentes do Leblon

Os inocentes do Leblon
Não viram o navio entrar
Trouxe bailarinas?
Trouxe emigrantes?
Trouxe uma grama de rádio?
Os inocentes do Leblon, definitivamente inocentes, tudo ignoram, mas a areia é quente e há um óleo suave que eles passam nas costas, e esquecem.

CDA