sexta-feira, novembro 30, 2007

Oração para 2008


A estátua que flutua de braços abertos todas as noites
É a nossa fonte inesgotável de esperança
Como pode alguém não ter a quem mirar?

Que venham os próximos 366 dias
Sem descanso
Ou mesmo um gole d’água

Para descer de sol a sol
52 semanas goela abaixo
Sábados e domingos de novela, samba, cachaça e futebol

O pão nosso de cada dia
Que o diabo amassou
Agradecemos em oração

E assim vamos perdoando a quem nos tem ofendido
Caindo de tentação em tentação
Sem nos livrarmos do mal

Amém!

terça-feira, junho 26, 2007

Arriscar é preciso


O sonho sempre foi voar
Mas vivia preso à terra
Sentia segurança ao pisar o solo firme

O chão, contudo, mostrou-se movediço
E seu corpo escorria como areia terra a dentro
Pelo caminho, as pedras o faziam tropeçar
Os espinhos o mutilavam
E os animais peçonhentos o atacavam

Até que um dia, se atirou do precipício
Esperando uma mão que o aparasse na queda
Ou, como que um milagre de Deus, lhe surgissem asas nas costas.

quarta-feira, maio 23, 2007

Realidade, um prato muito indigesto

Os comentários mais recorrentes que ouvi a respeito diziam ser “pesado” e “forte”. Definitivamente, o prato está por demais apimentado para o paladar açucarado da classe média burguesa formadora de opinião do sudeste do Brasil, acostumados aos quitutes insossos do horário nobre. A verdade de um cineasta nascido em Pernambuco é como pimenta nos olhos sensíveis do público médio pequeno burguês. Baixio das bestas não é um filme moral como os filmes da sessão da tarde, nem tem um final feliz como as novelas das oito. Não há mocinhos. Os bandidos – sim, eles existem – nem sempre se dão mal. E o end quase nada tem de happy. O realismo está além do horizonte de realidade que os olhos do povo que vive de frente para o mar e de costas para o Brasil podem enxergar. Cláudio Assis mostra que os problemas do país não cabem em uma edição do Jornal Nacional, pois o nosso 11 de setembro é diário e não há sabão em pó, amaciante e cerveja da Boa que limpe e amacie nossa crueza e nos embriague a ponto de nos fazer esquecer da nossa miserável condição.

quarta-feira, maio 16, 2007

A miserável condição humana


Enquanto raça antropófaga
Enquanto espécie auto-sabotadora
Enquanto seres inertes, servis e auto-indulgentes

Enquanto espectadores da própria desgraça
Enquanto refugiados de si mesmos

Enquanto suicidas coletivos
Enquanto homicidas instintivos

Enquanto devotos idólatras
Enquanto incréus

Enquanto loucos geniais
Enquanto sãos e apenas sãos

Enquanto órfãos da pátria
Enquanto filhos da outra

Enquanto paus-mandados sem comando
Enquanto capatazes sem razão

Enquanto porca e parafuso
Enquanto engrenagens do sistema

Enquanto P.E.A
Enquanto párias
Enquanto V.I.Ps

Enquanto consumidores
Enquanto marcas
Enquanto rótulos

Enquanto Cálice!
Enquanto Pare!
Enquanto Siga!
Enquanto Compre!
Enquanto Beba!
Enquanto Veja!

Enquanto prováveis aspirantes
Enquanto possíveis candidatos
Enquanto eternos pretendentes

Enquanto narcisistas
Enquanto onanistas

Enquanto carne
Enquanto osso
Enquanto pó

Enquanto poeira de estrelas

Enquanto imagem e semelhança

* * * * *

Você deve notar que não tem mais tutu e dizer que não está preocupado

Você deve lutar pela xepa da feira e dizer que está recompensado

Você deve estampar sempre um ar de alegriae dizer: tudo tem melhorado

Você deve rezar pelo bem do patrão e esquecer que está desempregado


Você merece, você merece

Tudo vai bem, tudo legal

Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé

Se acabar em teu Carnaval


Você deve aprender a baixar a cabeça

E dizer sempre: "Muito obrigado"

São palavras que ainda te deixam dizer

Por ser homem bem disciplinado

Deve pois só fazer pelo bem da Nação

Tudo aquilo que for ordenado

Pra ganhar um Fuscão no juízo final

E diploma de bem comportado


Você merece, você merece

Tudo vai bem, tudo legal

Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé

Se acabarem com teu Carnaval?

* * * * *

Olha lá vai passando a procissão

Se arrastando que nem cobra pelo chão

As pessoas que nela vão passando acreditam nas coisas lá do céu

As mulheres cantando tiram versos, os homens escutando tiram o chapéu

Eles vivem penando aqui na Terra

Esperando o que Jesus prometeu


E Jesus prometeu coisa melhor

Prá quem vive nesse mundo sem amor

Só depois de entregar o corpo ao chão, só depois de morrer neste sertão

Eu também tô do lado de Jesus, só que acho que ele se esqueceu

De dizer que na Terra a gente tem

De arranjar um jeitinho prá viver


Muita gente se arvora a ser Deus e promete tanta coisa pro sertão

Que vai dar um vestido prá Maria, e promete um roçado pro João

Entra ano, sai ano, e nada vem, meu sertão continua ao Deus dará

Mas se existe Jesus no firmamento, cá na Terra isso tem que se acabar


* * * * *


Letras:

1 - A miserável condição humana, de Ciço Pereira

2 - Comportamento Geral, de Luiz Gonzaga Jr.

3 - Procissão, de Gilberto Gil


Imagem:

A criação de Adão, de Michelangelo (1508-1512)

quinta-feira, maio 10, 2007

Alô, atenção!

Um minuto para os nossos comerciais. Quem não se comunica se estrumbica, já dizia o velho guerreiro. Sendo assim, gostaria de indicar alguns blogs interessantes para quando estiveres desocupado no trabalho, de mal com a mulher em casa ou se tiveres alguns minutos sobrando no counter do cyber café. Confiram na lista de links ao lado.

sexta-feira, maio 04, 2007

Os filhos da época

Somos os filhos da época,
e a época é política.
Todas as coisas - minhas, tuas, nossas,
coisas de cada dia, de cada noite
são coisas políticas.
Queiras ou não queiras,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,teus olhos, um brilho político.
O que dizes tem ressonância,
o que calas tem peso
de uma forma ou outra - político.
Mesmo caminhando contra o vento
dos passos políticos
sobre solo político.
Poemas apolíticos também são políticos,
e lá em cima a lua já não dá luar.
Ser ou não ser: eis a questão.
Oh, querida que questão mal parida.
A questão política.
Não precisas nem ser gente
para teres importância política.
Basta ser petróleo, ração,
qualquer derivado, ou até
uma mesa de conferência cuja forma
vem sendo discutida meses a fio.
Enquanto isso, os homens se matam,
os animais são massacrados,
as casas queimadas,
os campos se tornam agrestes
como nas épocas passadas
e menos políticas.

De WISLAWA SZYMBORSKA, poetisa polonesa, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 1996.
Tradução: Ana Cristina César

4 décadas de 100 anos


Era Prudêncio Aguilar quem o limpava, quem lhe dava de comer e quem lhe levava notícias esplêndidas de um desconhecido que se chamava Aureliano e que era coronel de guerra. Quando só, ele se consolava com o sonho dos quartos infinitos. Sonhava que se levantava da cama, abria a porta e passava para outro quarto igual, com a mesma cama de cabeceira de ferro batido, a mesma poltrona de vime e o mesmo quadrinho da Virgem do Remédios na parede do fundo. Desse quarto passava para outro exatamente igual, cuja porta abria para passar outro exatamente igual, e em seguida para outro exatamente igual, até o infinito. Gostava de ir de quarto em quarto, como numa galeria de espelhos paralelos, até que Prudêncio Aguilar lhe tocava o ombro. Então voltava de quarto em quarto, acordando para trás, percorrendo o caminho inverso e encontrava Prudêncio Aguilar no quarto da realidade. Uma noite, porém, duas semanas depois de o terem levado para a cama, Prudêncio Aguilar tocou-lhe o ombro num quarto intermediário, e ele ficou ali para sempre, pensando que era o quarto real.

No ano em que se completam 4 décadas do lançamento de Cem anos de solidão, releio o livro de García Márquez. O livro é tão avassaladoramente belo que, ao terminá-lo, precisei de alguns meses até passar ao próximo. É como saborear um prato tão divinamente saboroso que precisa-se de alguns dias até a próxima refeição para que o sabor não saia da boca.

A protagonista da trama sem dúvida nenhuma é a cidade de Macondo. Gabo, dizem, inspirou-se em sua cidade natal Aracataca, na Colômbia. É lá que chegam e partem, nascem e morrem incontáveis personagens. Tantos que a edição especial em homenagem aos 40 anos do livro trará a árvore genealógica da Família Buendía. As personalidades antagônicas de José Arcadios e Aurelianos vão se repetindo ao longo de um século em que a saga da família é narrada.

Macondo poderia perfeitamente ser qualquer cidadezinha do Brasil, Paraguai ou Nicarágua. Assim como os Buendía poderiam se chamar Silva, Hernandez ou Gimenez. Ciganos, ianques usurpadores, videntes, prostitutas, virgens, rebeldes, militares e muita gente humilde fazem parte de um universo fantástico e ao mesmo tempo extremamente real e atual. A guerra travada pelo coronel Aureliano Buendía tem início quando um interventor federal chega a Macondo e quer mudar a cor das casas dos moradores. Filho de José Arcádio Buendía, um dos fundadores da cidade, Aureliano rebela-se e inicia o conflito que se estende por décadas ao longo do livro. Progressistas e conservadores guerreiam incansavelmente, mas nenhum dos dois lados jamais chega à vitória. Ao fim, quando representantes do poder federal chegam para negociar a paz, o coronel chega à conclusão que todo o sangue derramado, todas as traições e famílias perdidas durante o conflito tiveram como única e exclusiva causa a sua própria vaidade.

Mas talvez somente o amor faça mais vítimas no livro do que a guerra. Uma inexplicável maldição deixa um rastro cadáveres por onde passa Úrsula, a mulher mais bela do mundo, para que nenhum homem deste planeta se atreva a tentar conquistar seu coração. E Amaranta, igualmente incapaz de amar, passa pela vida intocável por se negar a entregar-se a qualquer pretendente. O maior e verdadeiro amor é o mais proibido. Por mais que sua avó Fernanda del Carpio tentasse impedir, Aureliano Babilônia conhece a tia Amaranta Úrsula e os dois vivem a última – e talvez a mais verdadeira - história de amor que Macondo presencia.

Úrsula Iguarán Buendía, a matriarca da família, é o eixo, o pilar de sustentação do clã. Dizem que viveu mais de 150 anos, mas poucos sabem ao certo. A morte sempre fez parte de sua vida e seu carma foi enterrar marido, filhos, netos, bisnetos... Mas sempre se manteve disposta a receber os hóspedes em sua casa, mesmo em tempos de guerra, quando a cidade era tomada por inimigos dispostos a liquidar sua estirpe. Sua derrocada foi também o início do declínio dos Buendía.

O título do livro remete aos 100 anos entre a chegada de José Arcádio Buendía, Úrsula e os demais fundadores a Macondo, até o dia em que um vendaval de proporções bíblicas varre a cidade do mapa. Apesar dos muitos integrantes da família, a narrativa nos faz enxergar a solidão existente dentro de cada um deles. Mesmo os José Arcadios, tradicionalmente mais expansivos que os Aurelianos, viviam seus momentos de profunda tristeza e desamparo, principalmente às vésperas da morte. José Arcádio II, irmão gêmeo de Aureliano II, enfurnou-se no quarto do cigano Melquíades e de lá não saiu mais depois de presenciar o assassinato de 3 mil pessoas em praça pública pelas tropas federais.

Aureliano Babilônia é quem finalmente desvenda os pergaminhos de Melquíades. Filho bastardo de Renata Remédios com o humilde operário Maurício Babilônia, é feito refém em sua própria casa e só é libertado pelo amor. Com Amaranta Úrsula concebe o último Buendía e vê a profecia do cigano se cumprir: O primeiro da estirpe está amarrado a uma árvore e o último está sendo comido pelas formigas. Então sua reação não é de dor, nem de revolta, mas sim, de resignação ao seu próprio destino. Em meio aos ventos apocalípticos, presencia o fim de Macondo e o seu próprio.

Então deu outro salto para se antecipar às predições e averiguar a data e as circunstâncias de sua morte. Entretanto, antes de chegar ao verso final, já tinha compreendido que não sairia nunca daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilônia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra.

sexta-feira, abril 27, 2007

De Lagarto para o mundo

A arte é a representação da realidade a partir do ponto de vista das experiências pessoais de um artista. Todo aquele que representa a sua realidade a partir de técnicas visuais, sonoras ou qualquer outra forma de expressão sensorial pode ser considerado um artista. Independente do reconhecimento do que dizem o marchand A, o patrocinador B, o jornal X ou a revista Y.

Sou como artista, o impulso metamorfósico inconstante das formas. No caule do meu elemento imaginário, habita o anseio do novo em minutos e horas. A estagnação e vazio do pensamento são causas para o surgir. Não há certezas de incertezas, mas o signo de ira e amor, de dor e pétalas, dos meus sonhos, da minha sombra e dos meus passos. Encontrarei na imagem apenas aquilo que eu próprio tiver colocado nela. Se na percepção o saber se forma lentamente, na imaginação ao contrário, o saber é imediato. No ato mesmo pelo qual imagino uma imagem, está incluído esse conhecimento: a imagem nada me dá de novo, nenhuma surpresa pode me causar.

A auto-definição acima abre o blog de Tito Oliveira, o artista que mais insinua do que revela. E é assim, insinuando-se, que este artista vai pouco a pouco seduzindo, a partir da percepção seja de seus quadros, desenhos, instalações ou mesmo de suas palavras. O lirismo é o que prevalece. Nascido em Lagarto, agreste sergipano, passou grande parte da vida em Salvador, rodou por cidades do sul, sudeste, nordeste e da América do Sul, até chegar a São Paulo, onde vive, pelo menos até o fechamento desta matéria. Influenciado pela estética pop, sua obra cutuca a hipocrisia nossa de cada dia. Alfineta a modernidade, seus valores superficiais, a brevidade das relações interpessoais, os tecnologismos da sociedade de consumo do século XXI e até mesmo a nossa própria identidade.

Washington Silva dos Santos há apenas dois anos se tornou Tito Oliveira, “junção de um apelido de infância com o sobrenome de meu pai”, explica. Se a alcunha ficou mais simples e breve, o ser adquiriu meios para expressar toda a sua complexidade. Filho da dona de casa Vera Lúcia dos Santos e do motorista Carlos Oliveira dos Santos, Tito se auto-intitula “um verdadeiro vestígio de uma colonização mal planejada”. Para os pais, a transformação de Washington em Tito foi um sintoma de ascensão social, quase um milagre ou, como prefere o artista, “uma fenomenologia dos deuses”.

Como um Basquiat brasileiro do século XXI, Tito se define como “um pesquisador e autodidata”. Desde a infância teve contato com a arte. Era daqueles meninos que passava as aulas de matemática fazendo a caricatura do professor que escrevia no quadro negro. Seu talento é então revelado no colegial por sindicalistas. Desenhava charges, quadrinhos e ilustrações políticas para veículos de classe. “Lembro que os sindicatos pagavam dez reais por desenho”, conta. Os amigos músicos, então, começaram a chamá-lo para desenhar as capas de seus discos. É quando tem contato pela primeira vez com o universo artístico e do business. “Lembro da sensação de ser invadido pela arte, a observação de todas as construções de formas, a iluminação dos cenários e o contato com outros artistas, renomados e famosos”, deslumbra-se. Passou também a freqüentar a Escola de Belas Artes da Bahia. “Embora não encontrasse muitos artistas, adquiri uma visão mais ampla na exploração dos materiais”. Mas, segundo ele, a revelação veio do ostracismo, quando passou oito meses vivendo em uma colônia italiana, na região metropolitana de Salvador. “Sem meio social, conversando muito comigo e com a pintura, senti a obra me manipular, me redimir e me construir”.

Aos 28 anos, o menino de Lagarto já chegou mais longe do que muitos acreditavam. A Bahia ficou pequena quando, em 2005, Tito venceu o prêmio A Qualidade do Brasil, na categoria “Decoração conceitual e cenário” e, no ano seguinte, levou o primeiro lugar do Salão Regional de Artes Plásticas da Bahia, em Vitória da Conquista. O prêmio, concedido pela Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb), lhe rendeu um prêmio de R$ 5 mil. Em 2006, Tito arrumou as malas e foi mostrar seu trabalho na Europa. Sua obra Inércia, foi selecionada para a London Biennale, a exposição mundial de desenhos da capital inglesa. O artista também recebeu o prêmio da Fundação Cultural Européia (Amba), em Roma, na categoria “pintura” pela obra Pudores, parte integrante do projeto Identidade Nacional. Foi também na capital italiana que realizou a sua primeira exposição individual no Velho Continente: Fotografia de orifício manipulada (foto abaixo).
Antes disso, porém, Tito precisou superar as muitas dificuldades financeiras. Foi aprovado no vestibular para Artes Plásticas da Universidade Católica de Salvador (Ucsal), mas não teve como pagar as mensalidades. Assim, teve que se virar como pôde para manter o sonho vivo. De 2000 a 2005, mudou-se para São Paulo para tentar a vida e também assimilar novas referências artísticas. “Fui garçon, vendedor de griffes famosas em São Paulo, recepcionista de grandes festas, lavei pratos e banheiros numa pousada em Buenos Aires”, lembra rindo.

Como dizia Gonzaguinha, Tito “pensava que era um guerreiro com terras e gentes a conquistar”. Buscou saída em outras culturas. “Com uma realidade instável, era inevitável que me tornasse nômade”, diz. Assim, pôs o pé na estrada e conheceu Rio de Janeiro, Recife, Alagoas, Florianópolis, Curitiba, Belo Horizonte, Buenos Aires e Viña Del Mar no Chile. Morou em Sergipe, Ceará, Salvador, Teresina e São Paulo. Conta ainda que sofreu preconceitos, mas conseguiu se impor. “Muito embora minha interação social fosse vulnerável a rejeições, devido à minha origem, sempre fui contemplado por meu nível intelectual e erudição inexplicável”. E cita Platão: "Quanto menos se fala mais se aprende".

Esteve na Argentina em meio à crise econômica e a atmosfera de auto-superação do povo platino contagiou o artista. “Fui tomado pelo senso político e de justiça argentino”, recorda. Tanto que, quando o dinheiro acabou, para não deixar de imediato o país, entrou em acordo com a dona da pousada. "Combinamos que enquanto não tivesse dinheiro, ajudaria com os hospedes". E assim foi feito. Teve contato com pintores do país, mas “não me dei o prazer de interferir”, conta. Depois, seguiu para Viña del mar, no Chile. “Visitei galerias e conheci superficialmente alguns artistas. Mas o resumo da aventura mesmo foi a exploração antropológica”, avalia.

Expansão, trabalho vencedor do prêmio Funceb, na Bahia, em 2006, faz parte da coleção Simbiose. Os quadros chegam a ser perturbadores, pois Tito apresenta um futuro em que homem e máquina se fundem devido à extrema velocidade tecnológica em que vivemos. Apesar disso, o artista acha positiva a intervenção de novas tecnologias nas técnicas artísticas convencionais. “Para mim, isso é bastante favorável”, afirma. Mas ressalva que o artista precisa se utilizar das novas linguagens sem perder de vista o seu objetivo final, ou seja, a arte. “O que proponho no projeto Simbiose, é uma consciência maior da velocidade que vem ocorrendo e sobre o que isso implicaria em nosso bem estar num futuro muito próximo. Portanto, minha interferência é a consciência”, diz.

Atualmente, Tito trabalha em Impressão Digital, coleção que representa as várias etapas evolutivas na vida de um homem através de manipulações com impressões digitais, propriamente ditas. “A concepção representativa é proveniente da relação entre as interferências circunstanciais na formação de uma personalidade e a necessidade do estabelecimento de um signo, compatível aos padrões exigidos para a sua inclusão social”, diz em seu blog.

Identidade Nacional é outro projeto que caminha para sua fase de conclusão. As obras têm um caráter macunaímico, buscando interpretar a nossa realidade através de nossa origem miscigenada, como o fez Mário de Andrade na primeira metade do século passado. Quase como um anti-herói nacional, Tito joga na cara tanto de incautos xenófilos, quanto de imberbes xenófobos, nossa ancestralidade antropofágica inegável. Tito utiliza como base as teorias contidas em Literatura e subdesenvolvimento, de Antônio Cândido, para explicar as origens dos nossos próprios males. Cândido afirma haver as tendências de cópia e rejeição para com uma cultura dita estrangeira. “No primeiro caso, postula-se uma subordinação total e declarada aos padrões da cultura estrangeira. (...) No segundo caso, a idéia de rejeição aponta para uma recusa intransigente de todo e qualquer contributivo que venha de fora, buscando a todo preço uma originalidade ilusória. (...) não nos damos conta da recusa de uma importante junção cultural para o surgimento de uma nova cultura. Esta recusa implica, em todo caso, em genocídios culturais, artísticos e, sobretudo, no desenvolvimento do homem em sociedade”, afirma no blog.

O trabalho de Tito não se resume às telas. Ele também ministra o curso "Desenho Artístico e Pintura - Introdução à Arte Contemporânea" para funcionários do núcleo de medicina da Unifesp e moradores da Vila Mariana e de Santa Cruz, bairros de classe média de São Paulo. O convite chegou através de uma psicóloga adepta da arteterapia. O trabalho permite que Tito perceba o distanciamento do brasileiro médio do universo da arte contemporânea. “Existe, por parte da mídia uma influência no sentido de afastar as pessoas deste conhecimento. Embora existam programas e documentários interessantes sobre artes em redes fechadas e abertas, a atenção é direcionada para transmissões cada vez mais rasas”, analisa.

Mas o artista não se preocupa apenas em ensinar arte para a burguesia paulista. Na maior cidade do país Tito ensina os fundamentos da arte para alunos de três escolas públicas. Além disso, em novembro de 2006, deu aulas para jovens de Macajuba, cidade de 3 mil habitantes do sertão baiano. O convite partiu da ONG Cria (Centro de Referência Integral de Adolescentes), que organizou o IV Encontro Ser-tão Brasil – Fé na Terra, Pé no Chão. Os 28 alunos, que até então tinham referências baseadas apenas no grafite, tiveram, em apenas três dias, uma iniciação à arte contemporânea, em que aprenderam técnicas de pintura em muro. “Foi uma experiência muito favorável para o meu trabalho e para mim, como cidadão”, diz.

O artista também desenvolve instalações, trabalhos de intervenção urbana e decoração conceitual. “Embora minha iniciação artística provenha da linguagem pictórica, sou um artista contemporâneo/pós-moderno e prevaleço pela exploração em experimentos para novas linguagens e expressões”, define-se. Entre os trabalhos realizados estão as instalações da exposição Filtros, no interior da residência do colecionador e crítico de arte Dimitri Ganzelevitch, na Rua Direita do Santo Antônio, em Salvador, em 2006. Nesse mesmo ano, Tito esteve na 3ª etapa do Salão Regional de Artes Plásticas da Bahia, em Alagoinhas, com a obra Luzes dos Escuros (foto abaixo).

Atualmente, Tito divide seu tempo e espaço entre o trabalho e a família. “Meus princípios como cidadão foram literalmente alterados”, garante. “A boemia era uma constante em minha vida e isso interferia em minha disciplina e em minha concentração. Devo à minha esposa Carla muito do que sou hoje”, derrete-se. Mahanah, filha de Carla, vive com os dois. “No início, a dificuldade maior era a falta do espaço necessário para criação dos meus trabalhos. Agora, em nossa nova casa, disponho de uma área externa para concluir meus projetos”. Tito admite que apesar da adaptação difícil, o contato com o universo infantil, o fez observar novas possibilidades, a ponto de ter ingressado em uma faculdade de Pedagogia. “Com tantas trocas sublimes, fui percebendo que estava ficando mais rico”.

Tito demonstra incrível lucidez na condução de seu trabalho e nos objetivos de sua obra. Abordando temas existencialmente inquietantes, questiona de maneira igualmente incisiva passado e futuro. “Para a construção do meu trabalho é preciso que sua condução seja coesa a uma filosofia”. Embora sempre muito lírico, dá pistas de qual seja esta filosofia. “Penso que o que me favorece é a provocação de reflexões diante do que consiste em meu trabalho, enquanto condição humana”. Pescou?

Quanto às futuras gerações de artistas, Tito observa uma dicotomia a ser superada: “Certos artistas contemporâneos se moldam, neuroticamente, a cada salão que surge para vender currículo e não arte”, declara. Mas como viver de arte sem precisar se adaptar aos tempos da arte-business? “Quantos talentosos artistas violentam sua arte na esperança de conseguir alguma medalha ou ser aceito em algum salão? Quando me indagam qual requisito seria necessário para o participante lograr êxito, respondo: coerência”, aponta. Para ele, apenas a obra dirá quem é o artista. “O artista só se torna maduro ao longo de vários anos de exercício de sua arte. E a sua arte é sua convicção artística. O resto é monitoramento”, afirma. Tito propõe o rompimento como saída para a arte e cita expoentes da arte pop como exemplos. “Depois da revolução artística da arte pop nos anos 60, com Andy Warhol, Tom Welsseman, Dan Flavin, Dan Graham, Duchamp e outros, romper os lugares obsoletos para interferir em espaços inusitados é algo bastante arrojado. Além disso, o mundo moderno disponibiliza recursos tecnológicos, para pesquisas, construindo um viés maior para a exploração de novas linguagens e expressões”, conclui.

Imagens (pela ordem em que aparecem):

1 - Expansão, vencedora do prêmio Funceb, na Bahia, em 2006, faz parte da coleção Simbiose.

2 - Fotografia de orifício manipulada, parte da coleção Identidade Nacional, primeira exposição individual de Tito Oliveira na Europa, em Roma, Itália.

3 - Impressão Digital, um dos trabalhos mais recentes, ainda em fase de conclusão.

4 - Oficina de pintura em muro, realizada em novembro de 2006, em Macajuba, BA.

5 - Instalação Luzes no Escuro, obra que fez parte do 3o Salão Regional de Artes Plásticas da Bahia, em 2006.

6 - Tito Oliveira.

quarta-feira, abril 18, 2007

Zé do Caroço não morreu

Recentemente recebi uma notícia muito triste. Chegou por diversas fontes, porém todas as informações eram confusas, o que dava margem a dúvidas quanto à sua fidedignidade. Em face da onda de violência que assola a cidade, entretanto, não deixei de sentir profundo pesar. Conheci-o em um boteco de Vila Isabel em uma roda de samba com amigos em comum. Em meio a rodadas de cerveja e sambas, falava também de política. Era o mais eloqüente e criativo do grupo. Puxava os sambas e também compunha os seus.

Apesar disso, era tímido... não, não, reservado é melhor. Reservado ao falar de si. Contudo, não se furtou em contar suas histórias pessoais e o trabalho no Morro do Pau da Bandeira. Estava sofrendo a pressão dos traficantes da área para deixar de lado os discursos inflamados. Revoltava-se com a omissão das autoridades para com aquela gente e a conivência da associação dos moradores para com os traficantes na comunidade. Admirado até mesmo em outras favelas, discursava contra a ofegante epidemia do carnaval que, para ele, não era assim esse colosso, e a distração de nossa gente com as novelas.

Mas esta semana fui surpreendido com uma notícia alentadora... não, não, exultante é melhor. Um e-mail deste grande amigo, explicando as causas de seu sumiço na roda de samba da Vila. Precisou evadir-se do morro por causa de represálias dos traficantes à sua atuação comunitária. Não pode dizer onde está vivendo atualmente, mas garante que “em local seguro”. Parabeniza o blog e seus usuários pelo sucesso e garante que não abandonou a militância. Envia também um belíssimo texto acerca da visita de Joseph Ratzinger ao Brasil, que publico a seguir, e promete mais para breve.

Eis a mensagem:

Querido amigo Ciço,
Imagino que possa estar surpreso com esta missiva. Serei breve, pois as circunstâncias assim me obrigam. Passei por maus bocados no morro, mas agora estou em local seguro. Estou dando um tempo estratégico por aqui, mas queria parabenizar a você e aos usuários do blog por todo o sucesso. Envio a seguir algumas linhas sobre a visita deste a quem os fervorosos católicos denominam o sumo pontífice. Providencial sua chegada à terra brasilis, não acha?
Um grande abraço e o forte desejo de revê-lo em breve.
Zé do Caroço.
Imagem: Don Quixote, de Pablo Picasso

Louvado seja São Galvão!

Agora, justamente agora, a Divina Providência, providencialmente, traz o Sumo Pontífice ao maior país católico do mundo. Justamente quando emergem as forças neo-pentecostais ameaçando o poderio desta Igreja na Terra Brasilis. Justamente agora que o Grande Olho vê o castelo ser invadido por cavaleiros inimigos bem armados e evocando o nome do Senhor para crescer e multiplicar-se. Justamente agora far-se-á o primeiro santo genuinamente brasileiro! Louvado seja São Galvão que, envolto em um facho de luz, descerá das alturas para salvar ao mesmo tempo dois impérios em crise e efetuar o definitivo milagre que ratificará a sua condição! Amém!

Faz dois milênios mais sete anos que na Galiléia pregaram numa cruz de madeira um rapaz alegadamente rebelde para os padrões da época. Dizem que tinha cabelos e barbas compridos, olhos claros e andava vestido com um aspecto maltrapilho. Evocando as palavras de Deus, reunia seguidores à sua volta, pois estes acreditavam ser ele o enviado do Senhor. As autoridades, preocupadas com o comportamento daquela gente, obviamente, abriram os olhos. Quem este nazareno mulambento está pensando que é para desafiar as ordens de Roma e auto-proclamar-se o Rei dos Judeus? Auto lá, bradou César.

Conta-se que deram uns caraminguás quaisquer para um de seus amigos mais fiéis – justo o que zelava pelas economias do grupo. Mas é bem provável que os centuriões tenham enchido de bolacha a cara do tesoureiro para que ele dissesse onde o cabeludo havia se tocaiado. Pilatos, então, colocou lado a lado o dito messias e um ladrão de galinhas qualquer para que a horda decidisse quem seria o crucificado. O povão, indignado com a petulância daquele moleque que se dizia filho de Deus, pregava a desobediência ao imperador romano e alegava-se portador de poderes divinos, mandou-o para os pregos.

Ficou instituído que, três dias depois da morte, o rapaz ressuscitou e subiu aos céus para sentar-se ao lado do Senhor. Mas a verdade é que ele continua ali, pregado na mesma cruz há 2007 anos. E assim, ouvimos, de geração a geração, a história deste homem para nos fazer crer que o sofrimento redime, que a abnegação é o melhor caminho, que devemos sempre oferecer a outra face e perdoar a quem nos tem ofendido. A mensagem de amor, lealdade e justiça que deixou quando de sua passagem pela Terra, hoje é encoberta por axiomas que apregoam a culpa, a resignação e a obediência.

Do altar, sua imagem sustenta uma igreja conservadora, desumana e rancorosa. Uma instituição que queima, esquarteja, escalpela e empala impiedosamente os ditos "infiéis", abusa, violenta e estupra crianças, ignora pandemias como a AIDS, que dizimam populações em níveis continentais, concentra uma riqueza incalculável em ouro e outros metais. Tudo em nome de poder, influência política, religiosa e, acima de tudo, ideológica.

A imagem do corpo seminu e ensangüentado preso a dois troncos de madeira sobrepostos transversalmente serve como sustentação de dogmas que ditam o comportamento de milhões (seriam bilhões?) de pessoas em todo o mundo através de valores morais transmitidos ao longo dos tempos e enraizados de maneira inexpugnável até mesmo na mente do mais convicto dos ateus.

Atuando como o mais poderoso instrumento de manutenção da ordem estabelecida, a Igreja utiliza a fé de maneira a oferecer respostas aos questionamentos mais inexplicáveis possíveis. Assim sendo, desde sempre as instituições religiosas andam de mãos dadas com os poderes estabelecidos, concedendo-lhes autenticidade, mas também reivindicando o seu quinhão. Quem não se lembra que o bom velhinho Karol Vojtila serviu de sustentação ideológica para a queda do regime comunista na Polônia nos anos 80? E o fato de as políticas de incentivo ao uso de preservativos não serem eficazes, será que não tem nenhuma relação com a proibição de seu uso pelo Vaticano, daí os poderes públicos não quererem contrariar os ditames da Igreja Católica? Sei lá, é só um palpite...

A noção maniqueísta que temos das coisas, bem e mal, certo e errado, culpa, pecado, sofrimento e redenção, devemos à moral constituída, disseminada e consolidada pela religião. Nos tempos pós-pós-pós-modernos em que vivemos, buscam-se alternativas terrenas ao fatalismo da redenção celeste pós-morte. Cria-se, portanto, um mundo paralelo ao real em que tudo é artificial e virtual, desde o alívio da dor mais banal às relações interpessoais. Quando tudo o que interessa é unicamente o prazer, faz-se de qualquer coisa para evitar a dor e o sofrimento, mesmo quando estes são inevitáveis.

(Uma cena que ilustra muito bem esta idéia está no filme adaptação para as telas do romance homônimo de Irvine Welsh por John Hodge, em que o bebê de uma das personagens é encontrado morto no berço e, terrificados e inertes com a situação, os personagens, inclusive a mãe, correm para as agulhas e entopem-se de heroína).

Para as religiões neo-pentecostais, em que o lucro não é condenável, a saída é o trabalho e o louvor a Deus. Um Deus presumível e de quem se espera a redenção no final dos tempos, que ensina, pune, castiga, como fez com Jó, que mesmo assim, manteve-se fiel e temente a ele até a morte. Abandonados por aqueles a quem confiou poderes cá embaixo, porém abençoados pelos representantes de Deus na Terra, milhões de jós penam por aqui, tementes a este Deus inventado pelo homem e sustentado pela adoração de seus seguidores.

Conformados com nossa condição miserável e convictos de que tudo que aí está tem uma explicação incompreensível para nós mesmos, seguimos nosso cotidiano comezinho, comendo o pão que o Diabo amassou em nome de Deus. E, nas horas vagas, ingerimos substâncias alienantes da realidade, consumimos subterfúgios paliativos às nossas dores e desfrutamos de vidas alheias em busca de algo alentador, buscando falsas realidades na espera de uma suposta redenção divina.


Zé do Caroço

sexta-feira, março 02, 2007

Modernidade


tire o seu piercing do caminho
que eu quero passar com a minha dor

pra elevar minhas idéias não preciso de incenso
eu existo porque penso tenso por isso insisto
são sete as chagas de cristo
são muitos os meus pecados
satanás condecorado na tv tem um programa
nunca mais a velha chama
nunca mais o céu do lado
disneylândia eldorado
vamos nós dançar na lama
bye bye adeus gene kelly
como santo me revele como sinto como passo
carne viva atrás da pele aqui vive-se à mingua
não tenho papas na língua
não trago padres na alma
minha pátria é minha íngua
me conheço como a palma da platéia calorosa
eu vi o calo na rosa eu vi a ferida aberta
eu tenho a palavra certa pra doutor não reclamar
mas a minha mente boquiaberta
precisa mesmo deserta
aprender aprender a soletrar

tire o seu piercing do caminho
que eu quero passar com a minha dor

não me diga que me ama
não me queira não me afague
sentimento pegue e pague emoção compre em tablete
mastigue como chiclete jogue fora na sarjeta
compre um lote do futuro cheque para trinta dias
nosso plano de seguro cobre a sua carência
eu perdi o paraíso mas ganhei inteligência
demência felicidade propriedade privada
não se prive não se prove
dont't tell me peace and love
tome logo um engov pra curar sua ressaca
da modernidade essa armadilha
matilha de cães raivosos e assustados
o presente não devolve o troco do passado
sofrimento não é amargura
tristeza não é pecado
- lugar de ser feliz não é supermercado

tire o seu piercing do caminho
que eu quero passar com a minha dor

o inferno é escuro não tem água encanada
não tem porta não tem muro
não tem porteiro na entrada
e o céu será divino confortável condomínio
com anjos cantando hosanas nas alturas
onde tudo é nobre e tudo tem nome onde os cães só latem
pra enxotar a fome todo mundo quer quer
quer subir na vida se subir ladeira espere a descidas
e na hora "h"o elevador parar
no vigésimo quinto andar der aquele enguiço
- sempre vai haver uma escada de serviço

tire o seu piercing do caminho
que eu quero passar com a minha dor

todo mundo sabe tudo todo mundo fala
mas a língua do mudo ninguém quer estudá-la
quem não quer suar camisa não carrega mala
revólver que ninguém usa não dispara bala
casa grande faz fuxicoquem leva fama é a senzala
pra chegar na minha cama
tem que passar pela sala
quem não sabe dá bandeira
quem sabe que sabia cala
liga aí porta-bandeira não é mestre-sala
e não se fala mais nisso mas nisso não se fala

tire o seu piercing do caminho
que eu quero passar com a minha dor

Letra: Piercing, de Zeca Baleiro
Imagem: Dante e Virgílio no Inferno (1850), de William-Adolphe Bouguereau.

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

O Bem e o Mal


O nevoeiro voltou a avançar, alguma coisa estava para acontecer ainda, outra revelação, outra dor, outro remorso. Mas foi pastor quem falou, Tenho uma proposta a fazer-te, disse, dirigindo-se a Deus, e Deus, surpreendido, Uma proposta, tu, e que proposta vem a ser essa, o tom era irónico, superior, capaz de reduzir ao silêncio qualquer um que não fosse o Diabo, conhecido e familiar de longa data. Pastor fez silêncio, como se procurasse as melhores palavras, e explicou, Ouvi com grande atenção tudo quanto foi dito nesta barca, e embora já tivesse, por minha conta, entrevisto uns clarões e umas sombras no futuro, não cuidei que os clarões fossem de fogueiras e as sombras de tanta gente morta, E isso incomoda-te, Não devia incomodar-me, uma vez que sou o Diabo, e o Diabo sempre alguma coisa aproveita da morte, e mesmo mais do que tu, pois não precisa de demonstração que o inferno sempre será mais povoado do que o céu, E então de que te queixas, Não me queixo, proponho, Propõe lá, mas depressa, que não posso ficar aqui eternamente, Tu sabes, ninguém melhor do que tu o sabe, que o Diabo também tem coração, Sim, mas fazes mau uso dele, quero hoje fazer bom uso do coração que tenho, aceito e quero que o teu poder se alargue a todos os extremos da terra, sem que tenha de morrer tanta gente, e pois que tudo aquilo que te desobedece e nega, dizes tu que é fruto do Mal que eu sou e ando a governar o mundo, a minha proposta é que tornes a receber-me no teu céu, perdoado dos males passados pelos que no futuro não terei que cometer, que aceites e guardes a minha obediência, como nos tempos felizes em que fui um dos teus anjos predilectos, Lúcifer me chamavas, o que a luz levava, antes que uma ambição de ser igual a ti me devorasse a alma e me fizesse rebelar contra a tua autoridade, E por que haveria eu de receber-te e perdoar-te, não me dirás, Por que se o fizeres, se usares comigo, agora, daquele mesmo perdão que no futuro prometerás tão facilmente à esquerda e à direita, então acaba-se aqui hoje o Mal, teu filho não precisará morrer, o teu reino será, não apenas, não apenas esta terra de hebreus, mas o mundo inteiro, conhecido e por conhecer, e mais do que o mundo, o universo, por , por toda a parte o Bem governará, e eu cantarei, na última e humilde fila dos anjos que te permaneceram fiéis, mais fiel então do que todos, porque arrependido, eu cantarei os teus louvores, tudo terminará como se não tivesse sido, tudo começará a ser como se dessa maneira devesse ser sempre, Lá que tens talento para enredar almas e perdê-las, isso sabia eu, mas um discurso assim nunca te tinha ouvido, um talento oratório, uma lábia, não há dúvida, quase me convencias, Não me aceitas, não me perdoas, Não te aceito, não te perdôo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora, Porquê, Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imagina-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro, É a tua última palavra, a primeira e a última, a primeira porque foi a primeira vez que a disse, a última porque não a repetirei. Pastor encolheu os ombros e falou para Jesus. Que não se diga que o Diabo não tentou um dia a Deus (...).


O evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago (1991)

Imagem: El Cristo de San Juan de la Cruz, Salvador Dalí, 1951.

Vamos tirar o rapaz da cruz

Salve, salve, simpatia!
Dizem que Jesus morreu na cruz
mas eu tive com ele na Dutra, em Queluz
levava na cabeça um tabuleiro de cuscuz
cocada de céu, cocada de luz
cocada de céu, cocada de luz
cocada de céééuuu...


Jesus
Jesus, Jesus
Jesus

Galo cantou
Jesus
Pneu furou
Jesus
Vestibular
Jesus
Atravessar o mar
Moisés
Sobre as ondas com os pés
Jesus
Como Jojó de Olivença
Zulu

No mar da África do Sul
No mar da África do Sul
No mar da África

Jesus, Jesus...

Fazenda do Seu Jesus
Fazenda do céu, Jesus

Tem cachoeira
Fonte de água viva
Também faz sol
Chuva quando precisa
No São Francisco
piracemas de alegria
Belém-Brasília
feijãozinho da Dona Maria

Jesus, Jesus...

Tatu andou
Jesus
Tatuapé
São Paulo
Bicho pegou
Noé
Bicho de pé
Jesus
Faltou a luz

Jesus, Jesus...
Jesus, Jesus

Vamos tirar Jesus da cruz
Vamos tirar, vamos tirar
Vamos tirar Jesus da cruz

Nós vamos tirar Jesus da cruz
porque o rapaz está pregado
naqueles pedaços de pau
há mais de dois mil anos
Vamos deixar ele com os pés
e as mãos livres
que ele vai pular, dançar
virar cambalhota
e fazer muito melhor.
Mas é muito melhor!

E vai no lombo do cavalo
galopando pelo espaço
Salve a agricultura celeste

Salve a agricultura celeste
(Salve a agricultura celeste)
Salve Jorge, salve simpatia!
(Salve a agricultura celeste)
Salve Mané Garrincha
e Clementina de Jesus
(Salve a agricultura celeste)
Salve Chico Science
e Chico Xavier(Salve a agricultura celeste)
Salve Raul Seixas
e Chacrinha, o Velho Guerreiro
(Salve a agricultura celeste)
E paz na Terra
a todos os seres
(Salve a agricultura celeste... )

Jesus,
de Gustavo Valente, Lucas De Oliveira, Dado, André Passos, Rodrigo Cabelo, Beto Valente e Pedro Luís.

Imagem: Crucificação (Corpus Hypercubicus), 1954, Salvador Dalí

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Rodrigo Quik, o ativista da cultura


Corria o ano de 1982. Em uma remota ilha do Atlântico Sul, tropas argentinas tentam retomar território sob domínio inglês. No Rio de Janeiro, o gaúcho Leonel Brizola sobe ao poder vitorioso em um pleito em que se constatou manobra escusa para tirá-lo a vitória. No cinema estréia E.T., uma das maiores bilheterias da história do cinema, tendo sido o primeiro filme a ultrapassar os 700 milhões de dólares. Na música morrem Elis Regina e Adoniran Barbosa; na literatura, Sérgio Buarque de Holanda. No futebol, a talentosa seleção brasileira de Zico, Sócrates, Falcão e cia é eliminada da Copa da Espanha pelo esforçado escrete comandado por Paolo Rossi.

Alheio a tudo isso, no Edifício Franco Hara Center, na Tijuca, o garoto Edivaldo toma o seu achocolatado Quik todas as manhãs, joga Pac Man em seu Atári, vê as playboys da Tássia Camargo, Vera Fischer, Xuxa Meneghel e sacaneia os moleques menores do seu prédio. Um deles era o dentuço Rodrigo Sampaio Guimarães. Edivaldo então entra para a história em uma tarde quando encontra o pequeno Rodrigo na portaria e, na frente dos outros coleguinhas sentencia: “Aí, esse moleque é a cara do coelho Quik!”. A zombaria é geral. Tanta, que Rodrigo abre o berreiro e corre porta adentro de seu apartamento. Assim, como reza a lenda, quanto mais você se importa com o apelido, mais ele pega, pergunte hoje em dia a qualquer freqüentador de casas noturnas ou bares da Lapa quem é Rodrigo Quik e logo saberão a resposta.

Hoje Quik é o vocalista da bem-sucedida banda Perdidos na Selva - que toca cover dos sucessos brasileiros dos anos 80 – abriu um bar nas esquinas da Rua do Riachuelo com Silvio Romero, na Lapa e trabalha em sua candidatura para vereador em 2008. Artista e ativista multimídia, Quik responde àqueles que o chamam de aventureiro. “Comecei fazendo política estudantil no Pedro II, quando a maioria dos estudantes só queria entrar no grêmio para sair com as meninas”. Participou do movimento dos cara-pintadas, foi secretário de imprensa e presidente da AMES (Associação Municipal dos Estudantes Secundaristas do Rio de Janeiro). “Foi na minha gestão que os estudantes municipais conquistaram o direito ao passe livre”, lembra.

Depois da experiência de líder estudantil, Quik passou 10 anos afastado da política. Em 2004, decidiu candidatar-se a vereador pelo PSB. Obteve exatos 2.399 votos, número admirável para alguém desconhecido da grande maioria da população e sem uma estrutura partidária compatível para tais pretensões. “Em 2008 vou tentar de novo”, garante. Mas, desta vez, afirma estar melhor preparado. “Da primeira vez, não fizemos boca de urna no dia da votação, quando a legislação ainda permitia. Distribuí apenas alguns informativos nos dias que antecederam o pleito e, mesmo assim, tive uma votação que considero razoável. Hoje, tenho uma rede de relacionamentos muito maior e idéias mais claras a apresentar”.

Aos 33 anos, filho de pais de classe média, Quik é, como poucos, um empreendedor e um aglutinador. Consegue reunir pessoas ao seu redor e realizar projetos, como o Festival Ruído, que acontece pelo sexto ano consecutivo na Lapa, após o carnaval. “Certa vez, ouvi de um produtor de uma gravadora me dizer ‘se você quer tocar em um festival e não te chamam, faça o seu próprio festival’. Então criei o Ruído”. Quik tem estreita ligação com a música independente carioca recente. Foi um dos Suínos Tesudos e também vocalista do Narjara, nome que homenageava a então vendedora de cocos de Copacabana. Foi então que deslanchou com o Perdidos. “Sei que não vamos tocar em rádios, pois não pagamos jabá e só tocamos música dos outros, mas já chegamos muito além do que imaginávamos no início”. Ele lembra quando, no ano passado, a banda foi convidada a tocar em Manaus, onde se hospedou em um hotel cinco estrelas, com direito a passagem aérea paga e camarim com tudo do bom e do melhor “No início nem sonhávamos com algo assim”.

Recentemente, o grupo também gravou um dvd ao vivo em um Canecão lotado, com diversas participações especiais. Em 2007, a banda completa seis anos de estrada. Sobre o futuro da banda, Quik é otimista. “Eu sempre acreditei que a maioria das bandas dura, em média, dois anos e meio. Se já chegamos até aqui, não quero parar mais”. E planeja: “Acredito que existe um ciclo de nostalgia a cada 20 anos. Na próxima década, podemos tocar músicas que foram sucesso nos anos 90, como O Rappa e Los Hermanos, que fizeram, para mim, os dois melhores discos dos últimos dez anos: Lado B Lado A e Ventura”. Mas ele também tem planos de realização individuais: “Quero fazer um disco solo para tocar um rock-pop-light, pois sou um cara careta”.

Em meados de 2006, Quik estava em seu recém-inaugurado bar quando duas pessoas desceram de um ônibus e foram ter com ele. Você é o Rodrigo Quik, não é, perguntaram. Sou, respondeu. Queremos te convidar para ser diretor artístico da Estudantina. Topo, disse, sem titubear. “A proposta era ótima. A casa fica na região central do Rio, onde eu conheço muito bem e tem um porte médio, coisa que, depois do fechamento do Ballroom, o Rio ficou carente”. Dois meses e meio depois, a parceria se desfez. “Do ponto de vista artístico, até que não houve desavenças, mas todas as demais cláusulas do contrato foram descumpridas”, afirma visivelmente irritado. “Já consultei o meu advogado e vou processá-los. Neste meio, todos se conhecem e é a minha credibilidade que está em jogo. Todos sabem que eu sou um cara honesto e que não gosto que me passem para trás. As pessoas não podem sacanear os outros e ficar por isso mesmo”, desabafa.

“Quero criar um blog só de reclamações. Todos dizem que sou muito resmungão”. E a indignação de Quik tem alvo certeiro. Ele se diz enfadado da isenção da classe média no cenário político. “A classe média é a primeira a poder mudar, mas a primeira também a se isentar disso. A maneira de protesto preferida deste segmento é pregar o voto nulo. Como mudar desse jeito?”. E dispara ainda contra a classe artística. “Em 2004 foram realizadas alguns debates no (Teatro) Sérgio Porto com o Miguel Falabella e o Gil, em que antes, muito se ouvia dos artistas que iriam fazer e acontecer. Mas na hora, o que se viu foi muita bajulação e pedidos de ajuda financeira. Esta é a realidade da classe: o pires na mão”.

Na sua visão, as causas dos problemas no Rio são históricas. “O Rio hoje vive todas as mazelas de ex-capital federal: a lógica de acomodação dos funcionários públicos e ainda a mania de se achar malandro, mais esperto que os outros. E assim, vamos ficando para trás”. E quais os instrumentos de transformação? “A grande transformadora hoje em dia é a TV Globo. E quem está errado nisso não é ela, empresa privada que visa o lucro, mas sim o poder público. Ao invés de ele servir como alternativa ao capital privado, ele se alia”. E lembra um fato recente para exemplificar: “Sabe como prenderam o menino que matou a socialite no Leblon? Cortaram a tv a gato dos moradores da Cruzada. Em poucas horas os próprios vizinhos entregaram o garoto”.

E Quik vai além da esfera municipal. “Acredito que só mesmo estando dentro do sistema é possível se mudar alguma coisa. Precisamos de uma reforma política urgente com voto em lista. Temos que deixar de votar em nomes para votarmos em idéias”. Sobre as últimas eleições, analisa: “Não vejo uma renovação muito grande. Foi mais uma mudança de nomes do que de idéias. Na Alerj, o Freixo foi eleito pelo belo papel realizado pelo PSOL, e na Câmara Federal, a Manuela D’ávila, pelo nome que ela construiu no Rio Grande do Sul. Em compensação, tivemos o ACM Neto. Ele é jovem, mas suas idéias são as mais conservadoras possíveis”. Sobre o fim da cláusula de barreira, ele lamenta: “Deveria existir uma maneira de preservar os partidos ideológicos e eliminar apenas aqueles que sobrevivem do fisiologismo”.

O ativismo cultural levou Quik a criar o Manifesto da Cultura Independente Carioca (MCIC), que pode ser acessado pelo endereço http://www.manifestocarioca.blogger.com.br/. Lá Quik solta o verbo contra as políticas públicas de cultura e de lazer, como o fechamento de casas como o já citado Ballroom, Teatro de Lona, Lagoinha e Quinta do Bosque; os projetos dos quiosques de Copacabana, todos realizados pelo escritório do arquiteto Índio da Costa, braço direito do prefeito César Maia; a reforma do Teatro Sérgio Porto, realizada pelo ad eternun secretário municipal de Cultura, Ricardo Macieira; e a administração das lonas culturais. “No papel é um projeto revolucionário. Mas na prática, nada acontece. Tudo é privatizado, a programação é elitizada, os artistas locais não conseguem mostrar o seu trabalho e os ingressos são caríssimos”.

A indignação fez Quik voltar à política. Quatro anos depois de sua primeira eleição para a Câmara dos Vereadores, agora ele garante estar mais preparado. Filiado ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), Quik agora está à frente de um grupo de trabalho que pretende se destacar pela ética e vontade política. “Ética não pode ser qualidade, tem que ser pré-requisito. Além disso, estamos reunindo gente que, mesmo sem ter histórico político-partidário, está inconformada com o que está aí e quer trabalhar para mudar”. O grupo é formado por formadores de opinião e lideranças regionais de municípios fluminenses das mais diversas áreas como saúde, segurança, sindicatos, mas basicamente – é claro – da área cultural. “Queremos levantar discussões e propor soluções que representem todas as áreas e todas as localidades que estiverem aqui representadas e ainda trazer mais gente para dialogar com a gente. Assim é que se faz política, através da representação e da participação”.

quarta-feira, janeiro 31, 2007

Prontos para amar o Grande Irmão II


ou O que de melhor poderia ter sido da tragédia mas não foi

Prédio da editora Abril não foi afetado por desabamento de obra no metrô paulista.

Ao contrário do que chegou a ser veiculado por alguns órgãos de imprensa, o prédio da Editora Abril, localizado na Marginal Pinheiros, em São Paulo, não sofreu qualquer abalo estrutural com o desabamento de uma parte da obra de expansão do metrô, próximo ao edifício, na tarde da sexta-feira (12/01).

Em nota distribuída à imprensa, a Abril informa que o expediente na empresa continuou normal, sem nenhuma evacuação ou procedimento especial.

A notícia reproduzida acima foi publicada no dia 12/01 no website Comunique-se. Todos entendem que o veículo é dirigido a profissionais de comunicação social. Contudo, soa um tanto patético, para não dizer cruel, relatar que as estruturas de um prédio não foram abaladas e não destinar sequer uma linha para lembrar o que foi a tragédia em que sete pessoas perderam a vida, pelo menos cinco funcionários que trabalhavam no local ficaram feridos e algumas dezenas de moradores das cercanias tiveram suas casas destruídas. Chamar de corporativismo talvez seja pouco. Negligência, bobagem.

Honestamente, creio que perdemos a melhor oportunidade de termos nos livrado do império dos Civita. Estamos falando de uma editora transnacional, trazida para o Brasil em 1950 por Victor Civita, nascido nos Estados Unidos, filho de comerciantes italianos. Antes de abrir a empresa, Victor tentou a vida em outros ramos do comércio nos EUA e Europa. Foi quando viajou à Argentina para encontrar seu irmão César que, em 1940, fundara a Editora Abril e, através da licença de Walt Disney, passara a publicar as histórias do Pato Donald em terras platinas. Em pleno regime peronista, nem o governo nem o intelectualizado povo argentino gostaram daquela história. E assim, César e Victor decidiram se mudar para o Brasil, terra – como sabemos - de excelentes oportunidades para quem tem US$ 500 mil em recursos próprios e bom trânsito entre grupos internacionais.

Como num regime monárquico, Victor, falecido em 1990, passou o trono ao filho Roberto, que manteve a linha editorial conservadora da empresa. Ainda hoje, 30% de suas ações pertencem ao grupo Naspers, que financiou o Apartheid na África do Sul e teve três de seus representantes como ministros de governo no período em que Nelson Mandela esteve preso.

Em 56 anos de existência a Editora Abril, através da Revista Veja e de outras publicações: apoiou o golpe de 64 e a manutenção do regime militar (embora diga que não); foi contra o movimento das Diretas Já; apoiou o então candidato Fernando Collor de Mello; combateu desde sempre todos os movimentos de origem popular, como o MST tratando os trabalhadores sem-terra como uma cambada de vagabundos arruaceiros; estimulou o preconceito contra homossexuais como quando publicou a capa “O poeta agoniza em praça pública”, sobre Cazuza, combateu ad eternun Lula e todos os candidatos de esquerda neste país; incentivou a indústria bélica e a violência com a capa “7 razões para votar não”, quando do plebiscito sobre o desarmamento, esquecendo-se de todos os princípios de objetividade e imparcialidade que prega o bom jornalismo e, deslavadamente, ignorando o direito de opinião do leitor; e estimulou a isenção na participação política com o movimento do voto nulo através de vinhetas na programação de sua emissora de televisão voltada para o público jovem, MTV.

Sinceramente, salvando-se a vida das centenas de colegas jornalistas e demais funcionários que - sem muitas opções no espremido mercado de trabalho jornalístico - dão duro todos os dias e ajudam a disseminar nos seus milhões de leitores o pensamento fascista, ultra-conservador e preconceituoso de seus sócios, o povo brasileiro só teria a ganhar se o prédio da Av. das Nações Unidas tivesse sido engolido pela cratera do metrô.

terça-feira, janeiro 30, 2007

Esclarecimento

Comunicamos que não publicaremos neste blog comentários anônimos, de caráter denunciativo, dirigidos levianamente a qualquer profissional, independentemente de sua tendência ideológica.

Ciço Pereira.

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Prontos para amar o Grande Irmão

Raras são as exceções de veículos de comunicação realmente independentes em nosso país. Dizem-se em busca das tais “objetividade e da imparcialidade” inexistentes neste ofício, quando o que fazem no fundo é defender a continuidade de um modelo mundial hegemônico de pensar e agir. Enquanto empresas privadas que visam o lucro, tudo o que fazem é garantir o pão deles de cada dia. Deles, entenda-se, dos proprietários e dos anunciantes desses veículos.

A distorção da informação começa nos bancos escolares, com currículos cada vez mais técnicos, com pouca ou nenhuma ênfase nas ciências humanas. Formam-se assim, profissionais quase que totalmente desprovidos de massa crítica, buscando apenas garantir o pagamento de suas contas e aquisições de seus luxos supérfluos pequeno-burgueses. Esquecemo-nos – não posso me excluir da classe, é óbvio - portanto, de nosso juramento: “Juro diante de Deus e dos homens exercer minha profissão com dignidade, jamais esquecendo que antes dos números, virão as pessoas que buscam o amor, a paz e a sabedoria. Juro em nome dos jornalistas e do Brasil, honrar sempre os preceitos da Ética, da Verdade e da Justiça".

“Liberdade de imprensa só existe para os donos de jornal”, já dizia o saudoso mestre Cláudio Abramo.

A manipulação continua quando o foca entra em sua primeira redação, cheia de normas e regras bem determinadas nos manuais de redação. Assim, vai se acostumando às foices do ofício que não variam muito de empresa para empresa, e cria assim, a auto-censura: pronto, agora ele já está apto para amar o Grande Irmão, como o lobomizado Winston Smith, ao final do genial 1984 de George Orwell. Neste estágio soa como incrível ingenuidade acreditar que uma imprensa consciente, aguerrida e questionadora é fundamental para a construção de um país livre, democrático e soberano: “Quão tolos sois vós, que quereis mudar o mundo!”, sentenciarão.

Mas, para não dizer que não falei das flores, reproduzo aqui duas notas publicada em janeiro de 2007 na revista Caros Amigos – honrosa exceção que confirma a regra de que a nossa imprensa não presta - na coluna Entrelinhas, de Hamilton Octávio de Souza:

Tratamento diferenciado

Jornais e revistas deram grande destaque e gastaram muitas páginas para denunciar os atrasos nos vôos comerciais e os prejuízos causados pelos usuários. Em alguns momentos, o assunto foi tratado como sendo um caso de segurança nacional. Os mesmos veículos de comunicação silenciam ou tratam sem importância a crise permanente dos transportes públicos nas principais cidades, onde milhões de trabalhadores perdem inúmeras horas diariamente devido à precariedade dos serviços prestados. Cadê a imprensa?

Comunicação Alternativa

Crescem em todo o país os movimentos e as manifestações em defesa da democratização da comunicação social. O Brasil precisa urgente de canais públicos de rádio e televisão, que expressem livremente as opiniões populares e o pensamento divergente do que é veiculado pelos oligopólios privados e pelos esquemas estatais. Chega de sufoco!

O Manifesto Plural, do alto de sua profunda tolice e ingenuidade, embarca na empreitada de mudar o mundo. Ciço Pereira, seus atuais e futuros colaboradores crêem piamente que é possível, sim, mudar a mentalidade de um país e de um povo com coragem para dar educação e informação de qualidade!

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Yarssan, o homem que veio da luz

Até os seis meses de idade não tinha nome. Chamavam-no bebezinho, menininho, criancinha. Até que, passando por uma venda de produtos árabes, quis saber o comerciante se anônimo assim ainda o era. Sim, responderam os pais. Chamem-no Yarssan, replicou o mouro. Bonito, mas não sei o que quer dizer, disse-lhe o progenitor, também descendente das terras das mil e uma noites. O homem que veio da luz, revelou o comerciante. E assim foi feito.

Cresceu no Rio de Janeiro. Morador de Santa Teresa, Yarssan e a irmã brincavam de pés descalços no asfalto das ladeiras do bairro. Soltavam pipa com os moleques do Cerro-Corá, favela vizinha à sua casa. O pai trabalhava em televisão e era chegado às noitadas e aos bares. Deslumbrou-se com os desacertos e o glamour do showbiz. Quando Yarssan completou 12 anos, sua mãe foi embora rumo à Brasília com os dois filhos. Lá se casou de novo com o homem que os pequenos aprenderam a chamar de pai até que este viesse a falecer. E foi no Planalto Central que Yarssan aprendeu a malandrear e a gostar de mulher. Criou sua identidade, fez amigos e tornou-se homem.

Aos 17, Yarssan resolveu sair de casa e acertar as contas com o pai. Viajou para Florianópolis, onde o progenitor estava vivendo. Encontrou uma figura mais passível de pena que de ódio. Desgastado pelo tempo, pelos excessos, passava os dias contando os feitos do passado para contentar-se com o emprego que lhe arranjaram em uma emissora local. Pela precariedade de suas antenas, o trabalho dos funcionários mal podia ser assistido a algumas dezenas de quilômetros dali. O velho mineiro casara-se com uma prima e residia em uma casinha de quarto e sala nos fundos de um salão de cabeleireiros em um bairro de classe média da capital catarinense. Yarssan chegou para viver ali, mas não ficou muito tempo. Incomodou-se com o jeito invasivo e maledicente da madrasta. Fazia intrigas entre ele e o pai, acreditando que assim não perderia a autoridade dentro da casa.

Assim, o jovem foi viver em uma morada de estudantes ali próximo. Bairro universitário, muitos alunos da UFSC vindos de cidades longínquas se reuniam em espécies de repúblicas e ali constituíam uma espécie de comunidade. Para viver, Yarssan foi trabalhar como vendedor de cartões de uma loja de departamentos. Passava os dias debaixo do sol, da chuva e, por vezes, do frio, abordando pessoas nas ruas e convencendo-as a “fidelizarem-se” à determinada loja. Saiu-se até bem na tarefa. Com o jeitinho malandro-conquistador, ganhava a confiança com o sorriso no canto dos lábios, os ombros sacolejantes e o olhar de esguelha. Saldo: muitas garotas, muitos amigos e alguns clientes para a loja.

Observando o estudo dos amigos de república, animou-se a estudar e também ingressar no mundo universitário. Como já freqüentava o refeitório da UFSC que servia bandejões à comunidade por módicos R$1,50, passou a visitar ainda a biblioteca da instituição onde ia às tardes depois de largou o emprego de “fidelizador”. Dedicou-se e foi aprovado para o curso de História no segundo semestre de 2004. Raspou a cabeça e foi passar uns tempos em Porto Alegre, onde a mãe estava vivendo àquela altura.

Seis meses depois retornou a Floripa onde começaria os estudos. Encantou-se com as chopadas, as meninas lindas que por ali passavam e passavam por ele. Namorou quem tinha para namorar e quem não tinha também. Não perdia uma chance de viver novas experiências e provar novos amores. Foi assim, se jogando na vida, um autêntico romântico por formação e por vivência. Atraía pessoas em torno dele por seu brilho no olhar, sua fome de viver, sua fé em si mesmo. Mas também buscou nos livros o conhecimento. Na república em que vivia, seu quarto não havia grande coisa. O colchão de solteiro estendido no chão, a meia dúzia de roupa que possuía empilhada em um canto e outra meia dúzia de livros empilhada em cima do criado-mudo recém-doado por outrem. Quando não estava na companhia das namoradas e dos amigos, recolhia-se ali e lia. Em pouco tempo, arranjou estágio na biblioteca da universidade, onde podia ler não só por prazer, como também por ofício.

Perdi contato com esta figura fascinante em maio de 2005, quando deixei o balneário hedonista. Yarssan acabara de amancebar-se com uma amiga dos tempos de Brasília e mudara-se para uma casa na Praia da Armação, recanto de surfistas, hippies e pessoas que querem mesmo ver o mundo de longe (bem fazem eles!). Mas, tempos depois, soube que desfizera o casamento e voltou a viver com a mãe e a irmã que haviam ido morar na cidade ao seu encontro. A irmã levava um filho na barriga e, mesmo com as dificuldades, todos estavam exultantes com a chegada do rebento.

Uma das últimas vezes que estivemos juntos foi no Fórum Social Mundial, em janeiro de 2005, em Porto Alegre, no interior do estádio Gigantinho, às margens do Rio Guaíba. Lá estavam Yarssan e alguns amigos de faculdade espremidos na arquibancada para assistir Hugo Cháves, com sua inconfundível camisa vermelho-sangue, falar por mais de quatro horas sobre “o sonho de uma América Latina unida, um dia ideal de Simon Bolívar”, e “contra o pensamento único globalizante plantado pelos norte-americanos e propagado pelos grandes oligopólios de comunicação do planeta”. Recentemente recebi uma carta dele, enviada a alguns poucos amigos. Nela, Yarssan contava que trancara o curso de História e deixara Floripa para aventurar-se pela América Latina. Como um Ernesto Guevara do século XXI, viajara com pouco dinheiro, mas muitos sonhos. Não foi com nenhuma Poderosa, mas sim, de carona, sozinho, crendo-se invulnerável.

A primeira parada fora justamente em Caracas, onde assistira à posse do líder venezuelano para seu terceiro mandato à frente do país. De maneira extremamente lúcida e madura para um jovem de apenas 20 anos, faz um relato do que viu nos dias que antecederam e nos posteriores ao pleito. Sem pudores de declarar sua admiração por Cháves, mas também sem perder o senso crítico de um historiador em formação, fala dos erros e acertos de seu governo que pôde perceber enquanto turista brasileiro, mas profundamente interessado no passado, presente e futuro daquele país e daquele povo. Pois sabe que ele, cidadão sul-americano assim como eu e você, caro leitor, também é parte integrante deste processo histórico.

Eis a carta: Eleições 3 de dezembro, Caracas, Venezuela


Escrevo sobre aquilo que venho observando e participando, desde setembro de 2006. Trato aqui do processo eleitoral, dentro do qual as únicas posições em debate eram por Chávez ou contra ele. Sou brasileiro e estou há pouco tempo por aqui, portanto, não vivi as transformações que o presidente venezuelano tanto proclama, de forma que me permita fazer juízo sobre o período de 7 anos do Governo "revolucionário Bolivariano". Lanço, então, algumas conversas, impressões e paixões com as quais tive contato, sem ocultar minha simpatia por este povo e governo.

Chego a essa data, 07/12/06, com um certo alívio, diante de tanta especulação sobre o desfecho das eleições. Fantasias e terrorismo que tentavam definir o voto desta gente. Aconselharam-me a estocar comida, coisa que muita, mas muita gente fez. As prateleiras dos grandes e pequenos mercados ficaram vazias na semana que antecedia o sufrágio. O que mais se questionava não era o resultado das urnas, pois esse parecia pré-anunciado pela clareza que tem o povo deste país, expresso no orgulho de vestir vermelho. O que nos deixava apreensivos era a seqüência dos fatos, o dia seguinte. Diante do trauma do golpe de 11 de abril, anunciava-se a possibilidade, quase viva nos discursos da oposição, de um não reconhecimento do resultado das urnas. Esta negação transbordaria em violência, diante de tamanha paixão que move a política por aqui. A oposição declamava aos 7 ventos que, caso ganhassem, a violência não seria uma possibilidade, mas sim uma certeza. 30% deste país está diretamente envolvido com o governo, seja através das missões ou pelos conselhos comunitários, não estando disposta a abrir mão dos avanços populares desses últimos sete anos.

Pra quem não sabe, existe oposição na Venezuela, com todos os direitos e liberdades políticas. Com direito a todo cinismo e velho estilo das oligarquias Latino Americanas. Seu principal candidato era Manuel Rosales, mas é bom assinalar que eram quase 30 candidatos, ao todo. Seu discurso era pronunciadamente à classe média, com o lema de "ABAJO Y A LA DERECHA" ou "ATRÉVETE A CAMBIAR". Sua principal proposta era um cartão de débito chamado "MI NEGRA", que já começou a ser entregue a seus eleitores antes das eleições e que, segundo a proposta, seria dado a 2.500.000 de famílias venezuelanas. Isso significa, no mínimo, 7.500.000 de pessoas, sendo que a Venezuela tem 25.000.000 de habitantes, ou seja, quase um terço de sua população seria beneficiada. Para essas famílias seria transferida, diretamente, uma quinta parte da renda petroleira venezuelana, que corresponderia de R$ 600 a 1000 para cada uma (e a Globo nos diz que é Chávez o populista mór da AL). Sua outra proposta era o incremento da segurança e defesa da propriedade privada, junto com a qual sempre vinha a foto de um menino de rua. Chávez dizia, para fechar seu programa eleitoral, que os venezuelanos deveriam votar com AMOR, o que Manuel Rosales rebatia dizendo que o AMOR PODE MATAR, que também virou um lema seu.

Tive a oportunidade de ver Chávez falando e de perceber a paixão ele move nas pessoas. Em todas as oportunidades que o povo tem de ouvi-lo, um mar vermelho toma conta da cidade. As pessoas levam quadros que talharam em madeira, cartas pessoais ao seu "Comandante", que é como o chamam. Vão em comunidade, em família ou sozinhas. Não são poucos os barbados que aprenderam a chorar por outro homem. Questiono-me sobre tanta adoração, fico a pensar sobre todas aquelas categorias depreciativas com que nos enchem a mídia brasileira, como messiânico ou populista. Pessoas humildes me falam, então, sobre o papel unificador que tem seu líder, que conseguiu sentar em uma mesma mesa campesinos, estudantes, marxistas, esquerdistas, velhos e jovens, homens e mulheres para discutir e construir o que hoje chamam CHAVISMO. Mas sempre me alertam de que o objetivo, e isso não pode depender de uma só pessoa, é o SOCIALISMO do séc. XXI para Venezuela e América Latina.

Através dos conselhos comunitários e de sua nova Constituição, a Venezuela pretende transformar sua fórmula democrática, que deixaria de ser representativa, para transformar-se em participativa e protagônica. Tenho visto muito êxito nos bairros e favelas, mas este ainda vai ser um processo longo e cheio de contradições. Por hora, o que se vê é mesmo o vazio de um sistema eleitoral, onde as diferenças são expressas com desperdício de papel e dinheiro, onde o que mais se cria é lixo, visto que tanta publicidade perde todo o sentido de um dia para o outro (a não ser para mim e para alguns amigos a quem me dirijo, futuros historiadores e colecionadores de cacarecos). Opiniões distintas nos tornam inimigos e o encontro entre VERMELHOS e AZUIS é brindado com gritos e surdez. Quando será que o maior dia de expressão política será aquele em que nos sentaremos para criar e crescer, coletiva e individualmente? Quando seremos coerentes para entender que fazer política é Cuidar do outro, da nossa comunidade, cidade, país e principalmente do nosso Meio Ambiente? Para isso teríamos que ter igualdade de oportunidades, enquanto não, segue a resistência.

Chávez ganhou com 63% dos votos. Este número representa pouco, o que mais me salta aos olhos é ver tanta gente entrando nas muitas universidades criadas, ver os conselhos comunitários transferindo o protagonismo para os bairros e indivíduos comuns. Ver as missões alimentando o povo com comida e cultura, todas realizações desse governo . É maravilhoso presenciar o despertar dessa sociedade, que há tanto adormecia no leito de uma cultura petroleira. Cheia de ilusões de riqueza que viria de um óleo, que lhes escorria aos dedos, para transformar-se em ouro no bolso alheio.

VIVA AMÉRICA LATINA, QUE SEJA DIGNA E SOBERANA!

Yarssan Dambrós

O sonho de Orieta

Sonhei que sobrevoava a cidade. É bom observar os lugares a distância. A beleza dos monumentos e construções é algo de tirar o ar. Sabe uma sensação de ter poucos olhos diante de algo muito bonito?

Fiquei voando sozinha e observando as pessoas voltando pra casa. E vi os carros, aqui são muitos, retornando todos ao mesmo tempo. Uma fila interminável no sentido contrário ao maior monumento da cidade: dois prédios muito altos, com duas conchas aos pés, uma côncava e a outra convexa. É aquele prédio, que alguns chamam, cinicamente, de “A Casa do Povo”. Ah, se você pudesse ver como essa casa é diferente das verdadeiras casas do povo. É muita pretensão em forma de concreto e beleza arquitetônica. Impossível não pensar nos universos áridos do nordeste, nos barracos das favelas, nos viadutos transformados em lar.

Nesse momento quase caio e percebo que devo me concentrar mais, pra não “perder” meu vôo. Já anoiteceu e o movimento de carros é bem menor. Agora está quase tudo deserto. Vejo, ao lado da “Casa do Povo”, outra construção, menor, porém não menos imponente. Essa eles chamam de “Palácio”. Como se ali vivessem um príncipe e uma princesa...

E aconteceu algo que só é possível nos sonhos. Consegui ultrapassar o concreto, driblando os guardas e me vi dentro do “Palácio”. Estava quase completamente escuro, só uma sala ainda permanecia com a luz acesa. Imaginei ser a sala do trono, porque os móveis, todos em madeira nobre e escura, transpiravam tradição. Havia um homem sentado diante da maior mesa, numa cadeira enorme (seria o trono?). Não parecia um príncipe. Seus cabelos não eram lisos e louros e pude observar que entre seus dedos entrelaçados, em que apoiava a cabeça, faltava um. Ele estava muito compenetrado, os olhos distantes, fixos, brilhavam muito. Não me parecia feliz. Como queria penetrar seus pensamentos! Fui tomada de um sentimento de solidão incrível. Não me lembro de ter me sentido assim nem em meus piores momentos. Mas o sentimento não era meu, era dele. Daquele homem sentado, solitário e distante.

Acordei assustada e chorando...

O que acontece na nossa vida que nos distancia tanto de quem verdadeiramente somos? Em que ponto ficaram os sentimentos sinceros, quem roubaram nossas risadas espontâneas? Porque nossas maiores crueldades não são ainda acertar pássaros com estilingue, furar pneu de carro, beliscar escondido o irmão caçula? E os nossos sonhos de salvar o mundo, onde estão? Porque somos tão fracos...

Aqueles olhos...aqueles olhos não me saem da cabeça. Olhos de criança no rosto meio envelhecido daquele homem.

A sensação de solidão que sinto agora é minha. Se lá era um palácio, e ele o Rei, nosso Rei estava triste e com medo.

E agora?



Orieta Valentim