sexta-feira, janeiro 12, 2007

O sonho de Orieta

Sonhei que sobrevoava a cidade. É bom observar os lugares a distância. A beleza dos monumentos e construções é algo de tirar o ar. Sabe uma sensação de ter poucos olhos diante de algo muito bonito?

Fiquei voando sozinha e observando as pessoas voltando pra casa. E vi os carros, aqui são muitos, retornando todos ao mesmo tempo. Uma fila interminável no sentido contrário ao maior monumento da cidade: dois prédios muito altos, com duas conchas aos pés, uma côncava e a outra convexa. É aquele prédio, que alguns chamam, cinicamente, de “A Casa do Povo”. Ah, se você pudesse ver como essa casa é diferente das verdadeiras casas do povo. É muita pretensão em forma de concreto e beleza arquitetônica. Impossível não pensar nos universos áridos do nordeste, nos barracos das favelas, nos viadutos transformados em lar.

Nesse momento quase caio e percebo que devo me concentrar mais, pra não “perder” meu vôo. Já anoiteceu e o movimento de carros é bem menor. Agora está quase tudo deserto. Vejo, ao lado da “Casa do Povo”, outra construção, menor, porém não menos imponente. Essa eles chamam de “Palácio”. Como se ali vivessem um príncipe e uma princesa...

E aconteceu algo que só é possível nos sonhos. Consegui ultrapassar o concreto, driblando os guardas e me vi dentro do “Palácio”. Estava quase completamente escuro, só uma sala ainda permanecia com a luz acesa. Imaginei ser a sala do trono, porque os móveis, todos em madeira nobre e escura, transpiravam tradição. Havia um homem sentado diante da maior mesa, numa cadeira enorme (seria o trono?). Não parecia um príncipe. Seus cabelos não eram lisos e louros e pude observar que entre seus dedos entrelaçados, em que apoiava a cabeça, faltava um. Ele estava muito compenetrado, os olhos distantes, fixos, brilhavam muito. Não me parecia feliz. Como queria penetrar seus pensamentos! Fui tomada de um sentimento de solidão incrível. Não me lembro de ter me sentido assim nem em meus piores momentos. Mas o sentimento não era meu, era dele. Daquele homem sentado, solitário e distante.

Acordei assustada e chorando...

O que acontece na nossa vida que nos distancia tanto de quem verdadeiramente somos? Em que ponto ficaram os sentimentos sinceros, quem roubaram nossas risadas espontâneas? Porque nossas maiores crueldades não são ainda acertar pássaros com estilingue, furar pneu de carro, beliscar escondido o irmão caçula? E os nossos sonhos de salvar o mundo, onde estão? Porque somos tão fracos...

Aqueles olhos...aqueles olhos não me saem da cabeça. Olhos de criança no rosto meio envelhecido daquele homem.

A sensação de solidão que sinto agora é minha. Se lá era um palácio, e ele o Rei, nosso Rei estava triste e com medo.

E agora?



Orieta Valentim

2 comentários:

Anônimo disse...

Há muitos anos atrás, vivi a ilusão que, nos jovens, faz da política, a
bandeira da transformação.
E essa transformação se exerceria pelo poder. Poder para realizar !
E aí, alguém muito sábio, que era visto como um boêmio intelectual, ou um acadêmico na boêmia, me disse: "Vais conhecer a solidão do poder". Tive medo, mas segui em frente. Hoje entendo, na pele, "O sonho de Orieta". Com a diferença somente que, em antevendo a solidão, me fiz no poder, como um lugar de minha própria base. E a solidão quando chegou, me encontrou acompanhada e na terra firme que eu conhecia.

Anônimo disse...

Seu texto tem criatividade e é bem escrito, fazendo ainda uma boa descrição dos ambientes e das cenas.
Ele parece piedoso com o nosso rei e aí é uma questão de opinião. Passou-me essa impressão – um homem amargurado pela invisível solidão e amaldiçoado pela traição de seus princípios e que não cumpre com a sua proposta responsabilidade de governar um país em benefício da maioria da população.
Mas esse negócio de elevarmos um personagem da política ao posto de um salvador da pátria me parece coisa errada. Essa "tendência" talvez esteja bem ligada a nossa formação cultural e religiosa - confiamos que um homem sempre virá para nos salvar.
Alguns dizem que Cristo voltará...
Penso, até arriscando uma interpretação do texto bíblico, do novo testamento, que a salvação não dependerá de um único homem e que esta, utopicamente, somente será possível quando efetivamente formos mais solidários do que competitivos.
Enquanto o próprio texto bíblico ainda alerta, "não acreditará em falsos profetas", alguns políticos se consideram realmente enviados por Deus. E os fiéis conferem legitimidade.
Vale dizer que enriquecimento material não tem a ver com a liberdade e o amor pregados por Jesus Cristo - ele não era um rei e vivia somente com as roupas do corpo. É nojento vermos pessoas sugando o patrimônio público pela tremenda ambição de ficarem ricas, de terem propriedades. Então, a gente ainda perde muito tempo ajoelhando diante de um presidente, de um chefe de governo.
Acho que normalmente não se pensa assim, mas vejo que a orientação política é bem influenciada pela nossa formação cristã.
Ou seja, Orieta, para mim, um chefe de Estado goza muito desse mito porque nosso povo ainda pensa de maneira muito nebulosa.
Não pode ser um homem responsável por toda uma nação.

Fábio Loureiro Morato