sexta-feira, abril 27, 2007

De Lagarto para o mundo

A arte é a representação da realidade a partir do ponto de vista das experiências pessoais de um artista. Todo aquele que representa a sua realidade a partir de técnicas visuais, sonoras ou qualquer outra forma de expressão sensorial pode ser considerado um artista. Independente do reconhecimento do que dizem o marchand A, o patrocinador B, o jornal X ou a revista Y.

Sou como artista, o impulso metamorfósico inconstante das formas. No caule do meu elemento imaginário, habita o anseio do novo em minutos e horas. A estagnação e vazio do pensamento são causas para o surgir. Não há certezas de incertezas, mas o signo de ira e amor, de dor e pétalas, dos meus sonhos, da minha sombra e dos meus passos. Encontrarei na imagem apenas aquilo que eu próprio tiver colocado nela. Se na percepção o saber se forma lentamente, na imaginação ao contrário, o saber é imediato. No ato mesmo pelo qual imagino uma imagem, está incluído esse conhecimento: a imagem nada me dá de novo, nenhuma surpresa pode me causar.

A auto-definição acima abre o blog de Tito Oliveira, o artista que mais insinua do que revela. E é assim, insinuando-se, que este artista vai pouco a pouco seduzindo, a partir da percepção seja de seus quadros, desenhos, instalações ou mesmo de suas palavras. O lirismo é o que prevalece. Nascido em Lagarto, agreste sergipano, passou grande parte da vida em Salvador, rodou por cidades do sul, sudeste, nordeste e da América do Sul, até chegar a São Paulo, onde vive, pelo menos até o fechamento desta matéria. Influenciado pela estética pop, sua obra cutuca a hipocrisia nossa de cada dia. Alfineta a modernidade, seus valores superficiais, a brevidade das relações interpessoais, os tecnologismos da sociedade de consumo do século XXI e até mesmo a nossa própria identidade.

Washington Silva dos Santos há apenas dois anos se tornou Tito Oliveira, “junção de um apelido de infância com o sobrenome de meu pai”, explica. Se a alcunha ficou mais simples e breve, o ser adquiriu meios para expressar toda a sua complexidade. Filho da dona de casa Vera Lúcia dos Santos e do motorista Carlos Oliveira dos Santos, Tito se auto-intitula “um verdadeiro vestígio de uma colonização mal planejada”. Para os pais, a transformação de Washington em Tito foi um sintoma de ascensão social, quase um milagre ou, como prefere o artista, “uma fenomenologia dos deuses”.

Como um Basquiat brasileiro do século XXI, Tito se define como “um pesquisador e autodidata”. Desde a infância teve contato com a arte. Era daqueles meninos que passava as aulas de matemática fazendo a caricatura do professor que escrevia no quadro negro. Seu talento é então revelado no colegial por sindicalistas. Desenhava charges, quadrinhos e ilustrações políticas para veículos de classe. “Lembro que os sindicatos pagavam dez reais por desenho”, conta. Os amigos músicos, então, começaram a chamá-lo para desenhar as capas de seus discos. É quando tem contato pela primeira vez com o universo artístico e do business. “Lembro da sensação de ser invadido pela arte, a observação de todas as construções de formas, a iluminação dos cenários e o contato com outros artistas, renomados e famosos”, deslumbra-se. Passou também a freqüentar a Escola de Belas Artes da Bahia. “Embora não encontrasse muitos artistas, adquiri uma visão mais ampla na exploração dos materiais”. Mas, segundo ele, a revelação veio do ostracismo, quando passou oito meses vivendo em uma colônia italiana, na região metropolitana de Salvador. “Sem meio social, conversando muito comigo e com a pintura, senti a obra me manipular, me redimir e me construir”.

Aos 28 anos, o menino de Lagarto já chegou mais longe do que muitos acreditavam. A Bahia ficou pequena quando, em 2005, Tito venceu o prêmio A Qualidade do Brasil, na categoria “Decoração conceitual e cenário” e, no ano seguinte, levou o primeiro lugar do Salão Regional de Artes Plásticas da Bahia, em Vitória da Conquista. O prêmio, concedido pela Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb), lhe rendeu um prêmio de R$ 5 mil. Em 2006, Tito arrumou as malas e foi mostrar seu trabalho na Europa. Sua obra Inércia, foi selecionada para a London Biennale, a exposição mundial de desenhos da capital inglesa. O artista também recebeu o prêmio da Fundação Cultural Européia (Amba), em Roma, na categoria “pintura” pela obra Pudores, parte integrante do projeto Identidade Nacional. Foi também na capital italiana que realizou a sua primeira exposição individual no Velho Continente: Fotografia de orifício manipulada (foto abaixo).
Antes disso, porém, Tito precisou superar as muitas dificuldades financeiras. Foi aprovado no vestibular para Artes Plásticas da Universidade Católica de Salvador (Ucsal), mas não teve como pagar as mensalidades. Assim, teve que se virar como pôde para manter o sonho vivo. De 2000 a 2005, mudou-se para São Paulo para tentar a vida e também assimilar novas referências artísticas. “Fui garçon, vendedor de griffes famosas em São Paulo, recepcionista de grandes festas, lavei pratos e banheiros numa pousada em Buenos Aires”, lembra rindo.

Como dizia Gonzaguinha, Tito “pensava que era um guerreiro com terras e gentes a conquistar”. Buscou saída em outras culturas. “Com uma realidade instável, era inevitável que me tornasse nômade”, diz. Assim, pôs o pé na estrada e conheceu Rio de Janeiro, Recife, Alagoas, Florianópolis, Curitiba, Belo Horizonte, Buenos Aires e Viña Del Mar no Chile. Morou em Sergipe, Ceará, Salvador, Teresina e São Paulo. Conta ainda que sofreu preconceitos, mas conseguiu se impor. “Muito embora minha interação social fosse vulnerável a rejeições, devido à minha origem, sempre fui contemplado por meu nível intelectual e erudição inexplicável”. E cita Platão: "Quanto menos se fala mais se aprende".

Esteve na Argentina em meio à crise econômica e a atmosfera de auto-superação do povo platino contagiou o artista. “Fui tomado pelo senso político e de justiça argentino”, recorda. Tanto que, quando o dinheiro acabou, para não deixar de imediato o país, entrou em acordo com a dona da pousada. "Combinamos que enquanto não tivesse dinheiro, ajudaria com os hospedes". E assim foi feito. Teve contato com pintores do país, mas “não me dei o prazer de interferir”, conta. Depois, seguiu para Viña del mar, no Chile. “Visitei galerias e conheci superficialmente alguns artistas. Mas o resumo da aventura mesmo foi a exploração antropológica”, avalia.

Expansão, trabalho vencedor do prêmio Funceb, na Bahia, em 2006, faz parte da coleção Simbiose. Os quadros chegam a ser perturbadores, pois Tito apresenta um futuro em que homem e máquina se fundem devido à extrema velocidade tecnológica em que vivemos. Apesar disso, o artista acha positiva a intervenção de novas tecnologias nas técnicas artísticas convencionais. “Para mim, isso é bastante favorável”, afirma. Mas ressalva que o artista precisa se utilizar das novas linguagens sem perder de vista o seu objetivo final, ou seja, a arte. “O que proponho no projeto Simbiose, é uma consciência maior da velocidade que vem ocorrendo e sobre o que isso implicaria em nosso bem estar num futuro muito próximo. Portanto, minha interferência é a consciência”, diz.

Atualmente, Tito trabalha em Impressão Digital, coleção que representa as várias etapas evolutivas na vida de um homem através de manipulações com impressões digitais, propriamente ditas. “A concepção representativa é proveniente da relação entre as interferências circunstanciais na formação de uma personalidade e a necessidade do estabelecimento de um signo, compatível aos padrões exigidos para a sua inclusão social”, diz em seu blog.

Identidade Nacional é outro projeto que caminha para sua fase de conclusão. As obras têm um caráter macunaímico, buscando interpretar a nossa realidade através de nossa origem miscigenada, como o fez Mário de Andrade na primeira metade do século passado. Quase como um anti-herói nacional, Tito joga na cara tanto de incautos xenófilos, quanto de imberbes xenófobos, nossa ancestralidade antropofágica inegável. Tito utiliza como base as teorias contidas em Literatura e subdesenvolvimento, de Antônio Cândido, para explicar as origens dos nossos próprios males. Cândido afirma haver as tendências de cópia e rejeição para com uma cultura dita estrangeira. “No primeiro caso, postula-se uma subordinação total e declarada aos padrões da cultura estrangeira. (...) No segundo caso, a idéia de rejeição aponta para uma recusa intransigente de todo e qualquer contributivo que venha de fora, buscando a todo preço uma originalidade ilusória. (...) não nos damos conta da recusa de uma importante junção cultural para o surgimento de uma nova cultura. Esta recusa implica, em todo caso, em genocídios culturais, artísticos e, sobretudo, no desenvolvimento do homem em sociedade”, afirma no blog.

O trabalho de Tito não se resume às telas. Ele também ministra o curso "Desenho Artístico e Pintura - Introdução à Arte Contemporânea" para funcionários do núcleo de medicina da Unifesp e moradores da Vila Mariana e de Santa Cruz, bairros de classe média de São Paulo. O convite chegou através de uma psicóloga adepta da arteterapia. O trabalho permite que Tito perceba o distanciamento do brasileiro médio do universo da arte contemporânea. “Existe, por parte da mídia uma influência no sentido de afastar as pessoas deste conhecimento. Embora existam programas e documentários interessantes sobre artes em redes fechadas e abertas, a atenção é direcionada para transmissões cada vez mais rasas”, analisa.

Mas o artista não se preocupa apenas em ensinar arte para a burguesia paulista. Na maior cidade do país Tito ensina os fundamentos da arte para alunos de três escolas públicas. Além disso, em novembro de 2006, deu aulas para jovens de Macajuba, cidade de 3 mil habitantes do sertão baiano. O convite partiu da ONG Cria (Centro de Referência Integral de Adolescentes), que organizou o IV Encontro Ser-tão Brasil – Fé na Terra, Pé no Chão. Os 28 alunos, que até então tinham referências baseadas apenas no grafite, tiveram, em apenas três dias, uma iniciação à arte contemporânea, em que aprenderam técnicas de pintura em muro. “Foi uma experiência muito favorável para o meu trabalho e para mim, como cidadão”, diz.

O artista também desenvolve instalações, trabalhos de intervenção urbana e decoração conceitual. “Embora minha iniciação artística provenha da linguagem pictórica, sou um artista contemporâneo/pós-moderno e prevaleço pela exploração em experimentos para novas linguagens e expressões”, define-se. Entre os trabalhos realizados estão as instalações da exposição Filtros, no interior da residência do colecionador e crítico de arte Dimitri Ganzelevitch, na Rua Direita do Santo Antônio, em Salvador, em 2006. Nesse mesmo ano, Tito esteve na 3ª etapa do Salão Regional de Artes Plásticas da Bahia, em Alagoinhas, com a obra Luzes dos Escuros (foto abaixo).

Atualmente, Tito divide seu tempo e espaço entre o trabalho e a família. “Meus princípios como cidadão foram literalmente alterados”, garante. “A boemia era uma constante em minha vida e isso interferia em minha disciplina e em minha concentração. Devo à minha esposa Carla muito do que sou hoje”, derrete-se. Mahanah, filha de Carla, vive com os dois. “No início, a dificuldade maior era a falta do espaço necessário para criação dos meus trabalhos. Agora, em nossa nova casa, disponho de uma área externa para concluir meus projetos”. Tito admite que apesar da adaptação difícil, o contato com o universo infantil, o fez observar novas possibilidades, a ponto de ter ingressado em uma faculdade de Pedagogia. “Com tantas trocas sublimes, fui percebendo que estava ficando mais rico”.

Tito demonstra incrível lucidez na condução de seu trabalho e nos objetivos de sua obra. Abordando temas existencialmente inquietantes, questiona de maneira igualmente incisiva passado e futuro. “Para a construção do meu trabalho é preciso que sua condução seja coesa a uma filosofia”. Embora sempre muito lírico, dá pistas de qual seja esta filosofia. “Penso que o que me favorece é a provocação de reflexões diante do que consiste em meu trabalho, enquanto condição humana”. Pescou?

Quanto às futuras gerações de artistas, Tito observa uma dicotomia a ser superada: “Certos artistas contemporâneos se moldam, neuroticamente, a cada salão que surge para vender currículo e não arte”, declara. Mas como viver de arte sem precisar se adaptar aos tempos da arte-business? “Quantos talentosos artistas violentam sua arte na esperança de conseguir alguma medalha ou ser aceito em algum salão? Quando me indagam qual requisito seria necessário para o participante lograr êxito, respondo: coerência”, aponta. Para ele, apenas a obra dirá quem é o artista. “O artista só se torna maduro ao longo de vários anos de exercício de sua arte. E a sua arte é sua convicção artística. O resto é monitoramento”, afirma. Tito propõe o rompimento como saída para a arte e cita expoentes da arte pop como exemplos. “Depois da revolução artística da arte pop nos anos 60, com Andy Warhol, Tom Welsseman, Dan Flavin, Dan Graham, Duchamp e outros, romper os lugares obsoletos para interferir em espaços inusitados é algo bastante arrojado. Além disso, o mundo moderno disponibiliza recursos tecnológicos, para pesquisas, construindo um viés maior para a exploração de novas linguagens e expressões”, conclui.

Imagens (pela ordem em que aparecem):

1 - Expansão, vencedora do prêmio Funceb, na Bahia, em 2006, faz parte da coleção Simbiose.

2 - Fotografia de orifício manipulada, parte da coleção Identidade Nacional, primeira exposição individual de Tito Oliveira na Europa, em Roma, Itália.

3 - Impressão Digital, um dos trabalhos mais recentes, ainda em fase de conclusão.

4 - Oficina de pintura em muro, realizada em novembro de 2006, em Macajuba, BA.

5 - Instalação Luzes no Escuro, obra que fez parte do 3o Salão Regional de Artes Plásticas da Bahia, em 2006.

6 - Tito Oliveira.

quarta-feira, abril 18, 2007

Zé do Caroço não morreu

Recentemente recebi uma notícia muito triste. Chegou por diversas fontes, porém todas as informações eram confusas, o que dava margem a dúvidas quanto à sua fidedignidade. Em face da onda de violência que assola a cidade, entretanto, não deixei de sentir profundo pesar. Conheci-o em um boteco de Vila Isabel em uma roda de samba com amigos em comum. Em meio a rodadas de cerveja e sambas, falava também de política. Era o mais eloqüente e criativo do grupo. Puxava os sambas e também compunha os seus.

Apesar disso, era tímido... não, não, reservado é melhor. Reservado ao falar de si. Contudo, não se furtou em contar suas histórias pessoais e o trabalho no Morro do Pau da Bandeira. Estava sofrendo a pressão dos traficantes da área para deixar de lado os discursos inflamados. Revoltava-se com a omissão das autoridades para com aquela gente e a conivência da associação dos moradores para com os traficantes na comunidade. Admirado até mesmo em outras favelas, discursava contra a ofegante epidemia do carnaval que, para ele, não era assim esse colosso, e a distração de nossa gente com as novelas.

Mas esta semana fui surpreendido com uma notícia alentadora... não, não, exultante é melhor. Um e-mail deste grande amigo, explicando as causas de seu sumiço na roda de samba da Vila. Precisou evadir-se do morro por causa de represálias dos traficantes à sua atuação comunitária. Não pode dizer onde está vivendo atualmente, mas garante que “em local seguro”. Parabeniza o blog e seus usuários pelo sucesso e garante que não abandonou a militância. Envia também um belíssimo texto acerca da visita de Joseph Ratzinger ao Brasil, que publico a seguir, e promete mais para breve.

Eis a mensagem:

Querido amigo Ciço,
Imagino que possa estar surpreso com esta missiva. Serei breve, pois as circunstâncias assim me obrigam. Passei por maus bocados no morro, mas agora estou em local seguro. Estou dando um tempo estratégico por aqui, mas queria parabenizar a você e aos usuários do blog por todo o sucesso. Envio a seguir algumas linhas sobre a visita deste a quem os fervorosos católicos denominam o sumo pontífice. Providencial sua chegada à terra brasilis, não acha?
Um grande abraço e o forte desejo de revê-lo em breve.
Zé do Caroço.
Imagem: Don Quixote, de Pablo Picasso

Louvado seja São Galvão!

Agora, justamente agora, a Divina Providência, providencialmente, traz o Sumo Pontífice ao maior país católico do mundo. Justamente quando emergem as forças neo-pentecostais ameaçando o poderio desta Igreja na Terra Brasilis. Justamente agora que o Grande Olho vê o castelo ser invadido por cavaleiros inimigos bem armados e evocando o nome do Senhor para crescer e multiplicar-se. Justamente agora far-se-á o primeiro santo genuinamente brasileiro! Louvado seja São Galvão que, envolto em um facho de luz, descerá das alturas para salvar ao mesmo tempo dois impérios em crise e efetuar o definitivo milagre que ratificará a sua condição! Amém!

Faz dois milênios mais sete anos que na Galiléia pregaram numa cruz de madeira um rapaz alegadamente rebelde para os padrões da época. Dizem que tinha cabelos e barbas compridos, olhos claros e andava vestido com um aspecto maltrapilho. Evocando as palavras de Deus, reunia seguidores à sua volta, pois estes acreditavam ser ele o enviado do Senhor. As autoridades, preocupadas com o comportamento daquela gente, obviamente, abriram os olhos. Quem este nazareno mulambento está pensando que é para desafiar as ordens de Roma e auto-proclamar-se o Rei dos Judeus? Auto lá, bradou César.

Conta-se que deram uns caraminguás quaisquer para um de seus amigos mais fiéis – justo o que zelava pelas economias do grupo. Mas é bem provável que os centuriões tenham enchido de bolacha a cara do tesoureiro para que ele dissesse onde o cabeludo havia se tocaiado. Pilatos, então, colocou lado a lado o dito messias e um ladrão de galinhas qualquer para que a horda decidisse quem seria o crucificado. O povão, indignado com a petulância daquele moleque que se dizia filho de Deus, pregava a desobediência ao imperador romano e alegava-se portador de poderes divinos, mandou-o para os pregos.

Ficou instituído que, três dias depois da morte, o rapaz ressuscitou e subiu aos céus para sentar-se ao lado do Senhor. Mas a verdade é que ele continua ali, pregado na mesma cruz há 2007 anos. E assim, ouvimos, de geração a geração, a história deste homem para nos fazer crer que o sofrimento redime, que a abnegação é o melhor caminho, que devemos sempre oferecer a outra face e perdoar a quem nos tem ofendido. A mensagem de amor, lealdade e justiça que deixou quando de sua passagem pela Terra, hoje é encoberta por axiomas que apregoam a culpa, a resignação e a obediência.

Do altar, sua imagem sustenta uma igreja conservadora, desumana e rancorosa. Uma instituição que queima, esquarteja, escalpela e empala impiedosamente os ditos "infiéis", abusa, violenta e estupra crianças, ignora pandemias como a AIDS, que dizimam populações em níveis continentais, concentra uma riqueza incalculável em ouro e outros metais. Tudo em nome de poder, influência política, religiosa e, acima de tudo, ideológica.

A imagem do corpo seminu e ensangüentado preso a dois troncos de madeira sobrepostos transversalmente serve como sustentação de dogmas que ditam o comportamento de milhões (seriam bilhões?) de pessoas em todo o mundo através de valores morais transmitidos ao longo dos tempos e enraizados de maneira inexpugnável até mesmo na mente do mais convicto dos ateus.

Atuando como o mais poderoso instrumento de manutenção da ordem estabelecida, a Igreja utiliza a fé de maneira a oferecer respostas aos questionamentos mais inexplicáveis possíveis. Assim sendo, desde sempre as instituições religiosas andam de mãos dadas com os poderes estabelecidos, concedendo-lhes autenticidade, mas também reivindicando o seu quinhão. Quem não se lembra que o bom velhinho Karol Vojtila serviu de sustentação ideológica para a queda do regime comunista na Polônia nos anos 80? E o fato de as políticas de incentivo ao uso de preservativos não serem eficazes, será que não tem nenhuma relação com a proibição de seu uso pelo Vaticano, daí os poderes públicos não quererem contrariar os ditames da Igreja Católica? Sei lá, é só um palpite...

A noção maniqueísta que temos das coisas, bem e mal, certo e errado, culpa, pecado, sofrimento e redenção, devemos à moral constituída, disseminada e consolidada pela religião. Nos tempos pós-pós-pós-modernos em que vivemos, buscam-se alternativas terrenas ao fatalismo da redenção celeste pós-morte. Cria-se, portanto, um mundo paralelo ao real em que tudo é artificial e virtual, desde o alívio da dor mais banal às relações interpessoais. Quando tudo o que interessa é unicamente o prazer, faz-se de qualquer coisa para evitar a dor e o sofrimento, mesmo quando estes são inevitáveis.

(Uma cena que ilustra muito bem esta idéia está no filme adaptação para as telas do romance homônimo de Irvine Welsh por John Hodge, em que o bebê de uma das personagens é encontrado morto no berço e, terrificados e inertes com a situação, os personagens, inclusive a mãe, correm para as agulhas e entopem-se de heroína).

Para as religiões neo-pentecostais, em que o lucro não é condenável, a saída é o trabalho e o louvor a Deus. Um Deus presumível e de quem se espera a redenção no final dos tempos, que ensina, pune, castiga, como fez com Jó, que mesmo assim, manteve-se fiel e temente a ele até a morte. Abandonados por aqueles a quem confiou poderes cá embaixo, porém abençoados pelos representantes de Deus na Terra, milhões de jós penam por aqui, tementes a este Deus inventado pelo homem e sustentado pela adoração de seus seguidores.

Conformados com nossa condição miserável e convictos de que tudo que aí está tem uma explicação incompreensível para nós mesmos, seguimos nosso cotidiano comezinho, comendo o pão que o Diabo amassou em nome de Deus. E, nas horas vagas, ingerimos substâncias alienantes da realidade, consumimos subterfúgios paliativos às nossas dores e desfrutamos de vidas alheias em busca de algo alentador, buscando falsas realidades na espera de uma suposta redenção divina.


Zé do Caroço