O nevoeiro voltou a avançar, alguma coisa estava para acontecer ainda, outra revelação, outra dor, outro remorso. Mas foi pastor quem falou, Tenho uma proposta a fazer-te, disse, dirigindo-se a Deus, e Deus, surpreendido, Uma proposta, tu, e que proposta vem a ser essa, o tom era irónico, superior, capaz de reduzir ao silêncio qualquer um que não fosse o Diabo, conhecido e familiar de longa data. Pastor fez silêncio, como se procurasse as melhores palavras, e explicou, Ouvi com grande atenção tudo quanto foi dito nesta barca, e embora já tivesse, por minha conta, entrevisto uns clarões e umas sombras no futuro, não cuidei que os clarões fossem de fogueiras e as sombras de tanta gente morta, E isso incomoda-te, Não devia incomodar-me, uma vez que sou o Diabo, e o Diabo sempre alguma coisa aproveita da morte, e mesmo mais do que tu, pois não precisa de demonstração que o inferno sempre será mais povoado do que o céu, E então de que te queixas, Não me queixo, proponho, Propõe lá, mas depressa, que não posso ficar aqui eternamente, Tu sabes, ninguém melhor do que tu o sabe, que o Diabo também tem coração, Sim, mas fazes mau uso dele, quero hoje fazer bom uso do coração que tenho, aceito e quero que o teu poder se alargue a todos os extremos da terra, sem que tenha de morrer tanta gente, e pois que tudo aquilo que te desobedece e nega, dizes tu que é fruto do Mal que eu sou e ando a governar o mundo, a minha proposta é que tornes a receber-me no teu céu, perdoado dos males passados pelos que no futuro não terei que cometer, que aceites e guardes a minha obediência, como nos tempos felizes em que fui um dos teus anjos predilectos, Lúcifer me chamavas, o que a luz levava, antes que uma ambição de ser igual a ti me devorasse a alma e me fizesse rebelar contra a tua autoridade, E por que haveria eu de receber-te e perdoar-te, não me dirás, Por que se o fizeres, se usares comigo, agora, daquele mesmo perdão que no futuro prometerás tão facilmente à esquerda e à direita, então acaba-se aqui hoje o Mal, teu filho não precisará morrer, o teu reino será, não apenas, não apenas esta terra de hebreus, mas o mundo inteiro, conhecido e por conhecer, e mais do que o mundo, o universo, por , por toda a parte o Bem governará, e eu cantarei, na última e humilde fila dos anjos que te permaneceram fiéis, mais fiel então do que todos, porque arrependido, eu cantarei os teus louvores, tudo terminará como se não tivesse sido, tudo começará a ser como se dessa maneira devesse ser sempre, Lá que tens talento para enredar almas e perdê-las, isso sabia eu, mas um discurso assim nunca te tinha ouvido, um talento oratório, uma lábia, não há dúvida, quase me convencias, Não me aceitas, não me perdoas, Não te aceito, não te perdôo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora, Porquê, Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imagina-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro, É a tua última palavra, a primeira e a última, a primeira porque foi a primeira vez que a disse, a última porque não a repetirei. Pastor encolheu os ombros e falou para Jesus. Que não se diga que o Diabo não tentou um dia a Deus (...).
O evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago (1991)
Imagem: El Cristo de San Juan de la Cruz, Salvador Dalí, 1951.
2 comentários:
Saramago nos aproxima demais daquilo que mistificamos. Não li este livro, mas o trecho mostra um Deus orgulhoso e um Diabo com uma humanidade desconfortante pro leitor. Pronto, parece que achei a palavra que define, pra mim, o que já li de Saramago: desconforto. Foi assim que me senti lendo "Ensaio Sobre a Cegueira", "A Caverna" e agora este trecho do "Evangelho Segundo Jesus Cristo".
Saramago escreve sempre com muito cuidado. Cada palavra, cada vírgula, tem um sentido em si muito significativo. Isso me encanta.
Mas seus temas são mesmo tratados de forma muito real, sem máscaras ou outro disfarce. E ai,sinto o desconforto da verdade revelada.
Ainda não tenho uma opinião formada, mas estou pensando.
É dificil lidar com nossos
mais antigos conceitos. Mas volto em breve.
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