sexta-feira, novembro 03, 2006

El viejo marinero griego

Na década de 60, a Guerra Fria estava em seu auge e Cuba era uma novidade no cenário político internacional. Os rapazes que desceram Sierra Maestra para derrubar Fulgêncio Batista entraram para a história como os últimos românticos de um tempo que estava por vir. Fidel subiu ao poder levando consigo o sonho de milhões de jovens que pensavam que, enfim, o mundo seria um lugar justo. Os uniformes guerrilheiros, as longas barbas, as boinas passaram a ser referência estética de toda uma geração. Era um jeito mais charmoso de ser comunista do que o estilo durão dos soviéticos. A morte prematura de Guevara o eternizou no ideário de todos como herói e serve até hoje como sustentação de um governo do qual já não mais fazia parte quando foi emboscado em terras bolivianas. Mas isso já é outra história.

O fato é que em 1964 o debate ideológico era muito intenso, fervoroso, apaixonado. Todos acreditavam que o mundo estava dividido em dois. Como num Flamengo x Vasco, comunistas e capitalistas acreditavam que seu time era o melhor e que o adversário merecia ser liquidado para o bem da humanidade. Comunistas de todo o mundo iam até Havana saber como vivia aquele povo e como andava a revolução. Athanasios chegou à capital cubana em março daquele ano em um navio de bandeira grega. Havia lido acerca do triunfo dos revolucionários e estava ansioso em pôr os pés na Ilha. No navio, entre um turno e outro de trabalho, lia o Manifesto Comunista, O Livro Vermelho, O Estado e a Revolução, entre outros.

Desembarcou no porto da cidade maravilhado. Logo foi conhecer as belezas da nova terra. Encantou-se com a beleza arquitetônica, o clima tropical e a amabilidade das pessoas. Aprendera algumas palavras de castelhano quando esteve na Espanha meses atrás. Procurava conversar com as pessoas, saber o que pensavam e o orgulho que sentiam por seus heróis. Parou em um bar para beber algo. Encontrou alguns companheiros de viagem e ficaram a rir e contar o que de novo haviam visto.

Subitamente, ouviu uma áspera discussão vinda da calçada. Um homem negro, alto e forte gritava palavras duras contra uma mulher que Athanasios não conseguia entender. Ela não se fazia de rogada e reagia, gritando de volta. Fazendo-se valer do seu tamanho, o homem desferiu-lhe um soco no olho esquerdo, que a fez tombar na hora. O grego era de um tempo, de um país e de uma família que não sabiam ver uma mulher apanhando e ficar quieto. O sangue subiu-lhe à cabeça e o jovem marinheiro foi até lá tomar satisfações. Não se lembrou que era menor que o agressor. Como um bólido, surgiu na frente homem, pegando-o de surpresa, e acertou-lhe o queixo, fazendo-o tombar. Montou em cima do brutamonte e continuou a bater até que a turma do deixa disso interviesse. Os amigos do agressor o tiraram de cena, deixando para Athanasios os louros da vitória, seguido dos aplausos de todos no bar.

Só então foi ver o que acontecera à moça. Já havia sido socorrida pela irmã e parecia passar bem. Chamava-se Mercedez. Tinha 22 anos e era atriz. Membro do Partido Comunista, possuía os mesmos ideais libertários de Athanasios e grande parte do povo cubano. O homem que a violentou era um antigo namorado ciumento e inconformado com o término do relacionamento. Apesar da ideologia comunista comum, o homem cubano não fugia do estereótipo do macho latino, orgulhoso de seu falo e possessivo com aquelas que consideravam “suas coisas”, entre essas, as mulheres.

Athanasios e Mercedez logo se encantaram um pelo outro. O ato de bravura de um jovem-marinheiro-grego-comunista fez lembrar o ideal romântico dos folhetins, que as jovens moças latinas liam àquela época. Nos livros, o príncipe chegava de um reino distante para libertar a donzela das garras do tirano e viviam felizes para sempre. A jovem-e-bela-atriz-comunista-que-se-rebelara-contra-o-seu-opressor também deixara o forasteiro fascinado. Depois de um mês, a tripulação do navio grego deixou o território caribenho. Athanasios e Mercedez se despediram sem a certeza de que voltariam a se encontrar algum dia. Passaram a se escrever freqüentemente e, em uma dessas cartas, Mercedez enviou uma foto de sua filha.

Quarenta anos depois, Athanasios voltou a Cuba, mas, desta vez como turista. Vivia em Montreal, Canadá, com mulher, filhos e netos. Chegara à capital e matriculara-se no curso de espanhol para estrangeiros da Universidad de Havana, na turma ministrada por Soledad. Torna-se um senhor calvo, mas mantivera a aparência jovial, forte, alto e comunicativo. Sempre procurava estar perto dos mais jovens, gostava de contar seus "causos" de juventude, entoar canções de seus tempos, bailar salsa, e conversar com desconhecidos pelas ruas.

Em uma das aulas, el viejo marinero griego contou o caso de Mercedez, como se conheceram e fez supor que gostaria de revê-la. Soledad então ligou para uma rádio da capital que transmitia um programa especializado em promover encontros inusitados. A professora passou as informações e deu o endereço de Mercedez que Athanasios – pasmem – ainda recordava 40 anos depois. Soledad pediu que a avisassem caso tivessem qualquer notícia.

Dias depois, uma mulher retornou a ligação. Maria se dizia filha de Mercedez e demonstrava muita contrariedade com a procura pela mãe. Soledad explicou-lhe o caso, disse que um velho amigo grego estava de volta à Havana e gostaria muito de rever a mãe da moça. Esta, por sua vez, não quis conversa, disse que Mercedez não queria saber de tal amigo e bateu o telefone com força pondo fim ao diálogo. Soledad contou o caso a Athanasios que se pôs inconsolável. Não entendia por que a moça queria impedir a mãe de encontrar um antigo amigo.

A tristeza, no entanto, não tirou o ânimo do velho marinheiro. Ele, que já vencera tantas vezes mares bravios, tempestades e até icebergs, não haveria de sucumbir logo agora, menos jovem, porém mais experiente. Contratou um motorista de táxi, que fazia ponto em frente ao hotel em que estava hospedado. Mandou que percorresse toda a Calle Infanta, rua onde Mercedez morava 40 anos atrás. Foram de prédio em prédio, de casa em casa, um pelo lado par, outro pelo ímpar. Perguntavam por Mercedez, mãe de Maria. Muitos não a conheciam, mas outros foram dando outras dicas de quem poderia ser aquela senhora. Estava com 62 anos e sua filha, 40. A mãe tornara-se professora primária e dava aulas de teatro para adolescentes. Vivia com três filhos, dois netos e o marido. Casara-se há 30 anos com Marcos, com quem tivera Guadalupe e Rafael. O destino do pai de Maria era desconhecido. Alguns diziam ter morrido, outros, ido embora para o estrangeiro. Mas Marcos a criara e ela o tinha como real progenitor.

Já passava das cinco da tarde, mais de sete horas de busca, quando Athanasios tocou no número indicado por vizinhos onde Mercedez moraria. Um senhor de seus 70 anos foi ver quem era. Marcos, que a esta altura já sabia da história contada por Maria, abriu a porta. Ao ouvir a voz de Athanasios, Mercedez se dirigiu até a porta. Maria, reticente, ficou um passo atrás da mãe com cara de poucos amigos. Ao se reverem, depois de 40 anos, os dois velhos amigos não conseguiram conter a emoção. As lágrimas rolaram face abaixo de ambos e o abraço apertado durou alguns minutos sem que ninguém no recinto dissesse uma só palavra. Depois, o velho marinheiro cativou a todos com seu carisma. Conversaram e riram muito. Athanasios brincou com os netos de Mercedez, aconselhou-se com Marcos, relembrou os bons tempos com a amiga, contou piadas aos mais jovens e Maria chegou até a sorrir.

No dia seguinte, voltou convidado para o almoço. O grego levou presentes a toda a família que retribuiu com fotos e lembranças do país. Depois, trocou endereços de correspondência e despediu-se de todos antes de partir. Três meses após o regresso àquela que um dia fora a terra dos sonhos de um jovem marinheiro, Athanasios deixou Havana de volta ao Canadá. Sentia que pagara sua dívida com o passado. Sua missão estava cumprida e, enfim, poderia morrer em paz.

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