segunda-feira, dezembro 11, 2006

Breve meditação sobre um retrato de Che Guevara

Não importa que retrato. Qualquer um: sério, sorrindo, de arma em punho, com Fidel ou sem Fidel, discursando nas Nações Unidas, ou morto, com o dorso nu e olhos entreabertos, como se do outro lado da vida ainda quisesse acompanhar o rastro do mundo que teve de deixar, como se não se resignasse a ignorar para sempre os caminhos das infinitas crianças que estavam por nascer. Sobre cada uma dessas imagens poder-se-ia discorrer profusamente, de um modo lírico ou de um modo dramático, com a objetividade prosaica do historiador ou simplesmente como quem se dispôs a falar do amigo que percebe ter perdido porque o não chegou a conhecer.

Ao Portugal infeliz e amordaçado de Salazar e de Caetano chegou um dia o retrato clandestino de Ernesto Che Guevara, o mais célebre de todos, aquele feito com manchas fortes de negro e de vermelho, que se converteu em imagem universal dos sonhos revolucionários do mundo, promessa de vitórias a tal ponto fértéis que nunca poderiam se degenerar em rotinas nem em cepticismos, antes dariam lugar a outros muitos triunfos, o do bem sobre o mal, o do justo sobre o injusto, o da liberdade sobre a necessidade. Emoldurado ou fixo na parede por meios precários, esse retrato assistiu a debates políticos apaixonados na terra portuguesa, exaltou argumentos, atenuou desânimos, acalentou esperanças. Foi visto como um Cristo que tivesse descido da cruz para descrucificar a humanidade, como um ser dotado de poderes absolutos que fosse capaz de extrair de uma pedra a água com que se mataria toda a sede, e de transformar essa mesma água no vinho com que se beberia ao esplendor da vida. E tudo isto era certo porque o retrato de Che Guevara foi, aos olhos de milhões de pessoas, o retrato da dignidade suprema do ser humano.

Mas foi também usado como adorno incongruente em muitas casas da pequena e da média burguesia intelectual portuguesa, para cujos integrantes as ideologias políticas de afirmação socialista não passavam de um mero capricho conjuntural, forma supostamente arriscada de ocupar ócios mentais, frivolidade mundana que não pôde resistir ao primeiro choque da realidade, quando os fatos vieram exigir o cumprimento das palavras. Então, o retrato do Che Guevara, testemunha, primeiro, de tantos inflamados anúncios de compromisso e de ação futura, juiz, agora, do medo encoberto, da renúncia covarde ou da traição aberta, foi retirado das paredes, escondido, na melhor hipótese, no fundo de um armário, ou radicalmente destruído, como se fosse motivo de vergonha.

Uma das lições políticas mais instrutivas, nos tempos de hoje, seria saber o que pensam de si próprios esses milhares e milhares de homens e mulheres que em todo o mundo tiveram algum dia o retrato de Che Guevara na cabeceira da cama, ou na frente da mesa de trabalho, ou na sala onde recebiam os amigos, e que agora sorriem de terem acreditado ou fingido acreditar.

Alguns diriam que a vida mudou, que Che Guevara, ao perder sua guerra, nos fez perder a nossa, e portanto era inútil ficar a chorar, como uma criança, o leite derramado. Outros confessariam que se deixaram envolver por uma moda da época, a mesma que fez crescer barbas e alargar as melenas, como se a revolução fosse uma questão de cabeleireiro. Os mais honestos reconheceriam que lhes dói o coração, que sentem nele o movimento perpétuo de um remorso, como se a sua verdadeira vida tivesse suspendido o curso e agora lhes perguntasse, obsessivamente, aonde pensam ir sem ideais nem esperança, sem uma idéia de futuro que dê algum sentido ao presente.

Che Guevara, se tal se pode dizer, já existia antes de ter nascido. Che Guevara, se tal se pode afirmar, continuou a existir depois de ter morrido. Porque Che Guevara é só o outro nome do que há de mais justo e digno no espírito humano. O que tantas vezes vive adormecido dentro de nós. O que devemos acordar para conhecer e conhecer-nos, para acrescentar o passo humilde de cada um ao caminho de todos.


José Saramago

2 comentários:

Anônimo disse...

Saramago, te amo!

Anônimo disse...

Walter Benjamin disse algo que foi traduzido mais ou menos assim:a prostituição é a apoteose do capitalismo. Num mundo onde todas as relações são somente de imagens a saudosa foto do Che me soa como foder a mesma mulher por infinitos e repetitivos anos, com todo amor e respeito que devo a Saramago, somado a audácia que cabe aos jovens - como um dia já disse em seu livro, meu saudoso avô - a foto mais reproduzida só serve para nos lembrar que a reprodutividade limita a capacidade humana. O mito e a obra só servem para desacreditar os que sonham, pois nunca poderam ser como aquele que eles vislubram, os quais só conseguem enxergar através de imagens e sombras difusas... como uma camiseta vermelha com a foto de Ernesto Guevara de la Serna usada por um sindicalista barbudo, fedido e "huamano", que articula um suposto aumento para a classe de trabalhadores da empresa X do local Y.