Até os seis meses de idade não tinha nome. Chamavam-no bebezinho, menininho, criancinha. Até que, passando por uma venda de produtos árabes, quis saber o comerciante se anônimo assim ainda o era. Sim, responderam os pais. Chamem-no Yarssan, replicou o mouro. Bonito, mas não sei o que quer dizer, disse-lhe o progenitor, também descendente das terras das mil e uma noites. O homem que veio da luz, revelou o comerciante. E assim foi feito.
Cresceu no Rio de Janeiro. Morador de Santa Teresa, Yarssan e a irmã brincavam de pés descalços no asfalto das ladeiras do bairro. Soltavam pipa com os moleques do Cerro-Corá, favela vizinha à sua casa. O pai trabalhava em televisão e era chegado às noitadas e aos bares. Deslumbrou-se com os desacertos e o glamour do showbiz. Quando Yarssan completou 12 anos, sua mãe foi embora rumo à Brasília com os dois filhos. Lá se casou de novo com o homem que os pequenos aprenderam a chamar de pai até que este viesse a falecer. E foi no Planalto Central que Yarssan aprendeu a malandrear e a gostar de mulher. Criou sua identidade, fez amigos e tornou-se homem.
Aos 17, Yarssan resolveu sair de casa e acertar as contas com o pai. Viajou para Florianópolis, onde o progenitor estava vivendo. Encontrou uma figura mais passível de pena que de ódio. Desgastado pelo tempo, pelos excessos, passava os dias contando os feitos do passado para contentar-se com o emprego que lhe arranjaram em uma emissora local. Pela precariedade de suas antenas, o trabalho dos funcionários mal podia ser assistido a algumas dezenas de quilômetros dali. O velho mineiro casara-se com uma prima e residia em uma casinha de quarto e sala nos fundos de um salão de cabeleireiros em um bairro de classe média da capital catarinense. Yarssan chegou para viver ali, mas não ficou muito tempo. Incomodou-se com o jeito invasivo e maledicente da madrasta. Fazia intrigas entre ele e o pai, acreditando que assim não perderia a autoridade dentro da casa.
Assim, o jovem foi viver em uma morada de estudantes ali próximo. Bairro universitário, muitos alunos da UFSC vindos de cidades longínquas se reuniam em espécies de repúblicas e ali constituíam uma espécie de comunidade. Para viver, Yarssan foi trabalhar como vendedor de cartões de uma loja de departamentos. Passava os dias debaixo do sol, da chuva e, por vezes, do frio, abordando pessoas nas ruas e convencendo-as a “fidelizarem-se” à determinada loja. Saiu-se até bem na tarefa. Com o jeitinho malandro-conquistador, ganhava a confiança com o sorriso no canto dos lábios, os ombros sacolejantes e o olhar de esguelha. Saldo: muitas garotas, muitos amigos e alguns clientes para a loja.
Observando o estudo dos amigos de república, animou-se a estudar e também ingressar no mundo universitário. Como já freqüentava o refeitório da UFSC que servia bandejões à comunidade por módicos R$1,50, passou a visitar ainda a biblioteca da instituição onde ia às tardes depois de largou o emprego de “fidelizador”. Dedicou-se e foi aprovado para o curso de História no segundo semestre de 2004. Raspou a cabeça e foi passar uns tempos em Porto Alegre, onde a mãe estava vivendo àquela altura.
Seis meses depois retornou a Floripa onde começaria os estudos. Encantou-se com as chopadas, as meninas lindas que por ali passavam e passavam por ele. Namorou quem tinha para namorar e quem não tinha também. Não perdia uma chance de viver novas experiências e provar novos amores. Foi assim, se jogando na vida, um autêntico romântico por formação e por vivência. Atraía pessoas em torno dele por seu brilho no olhar, sua fome de viver, sua fé em si mesmo. Mas também buscou nos livros o conhecimento. Na república em que vivia, seu quarto não havia grande coisa. O colchão de solteiro estendido no chão, a meia dúzia de roupa que possuía empilhada em um canto e outra meia dúzia de livros empilhada em cima do criado-mudo recém-doado por outrem. Quando não estava na companhia das namoradas e dos amigos, recolhia-se ali e lia. Em pouco tempo, arranjou estágio na biblioteca da universidade, onde podia ler não só por prazer, como também por ofício.
Perdi contato com esta figura fascinante em maio de 2005, quando deixei o balneário hedonista. Yarssan acabara de amancebar-se com uma amiga dos tempos de Brasília e mudara-se para uma casa na Praia da Armação, recanto de surfistas, hippies e pessoas que querem mesmo ver o mundo de longe (bem fazem eles!). Mas, tempos depois, soube que desfizera o casamento e voltou a viver com a mãe e a irmã que haviam ido morar na cidade ao seu encontro. A irmã levava um filho na barriga e, mesmo com as dificuldades, todos estavam exultantes com a chegada do rebento.
Uma das últimas vezes que estivemos juntos foi no Fórum Social Mundial, em janeiro de 2005, em Porto Alegre, no interior do estádio Gigantinho, às margens do Rio Guaíba. Lá estavam Yarssan e alguns amigos de faculdade espremidos na arquibancada para assistir Hugo Cháves, com sua inconfundível camisa vermelho-sangue, falar por mais de quatro horas sobre “o sonho de uma América Latina unida, um dia ideal de Simon Bolívar”, e “contra o pensamento único globalizante plantado pelos norte-americanos e propagado pelos grandes oligopólios de comunicação do planeta”. Recentemente recebi uma carta dele, enviada a alguns poucos amigos. Nela, Yarssan contava que trancara o curso de História e deixara Floripa para aventurar-se pela América Latina. Como um Ernesto Guevara do século XXI, viajara com pouco dinheiro, mas muitos sonhos. Não foi com nenhuma Poderosa, mas sim, de carona, sozinho, crendo-se invulnerável.
A primeira parada fora justamente em Caracas, onde assistira à posse do líder venezuelano para seu terceiro mandato à frente do país. De maneira extremamente lúcida e madura para um jovem de apenas 20 anos, faz um relato do que viu nos dias que antecederam e nos posteriores ao pleito. Sem pudores de declarar sua admiração por Cháves, mas também sem perder o senso crítico de um historiador em formação, fala dos erros e acertos de seu governo que pôde perceber enquanto turista brasileiro, mas profundamente interessado no passado, presente e futuro daquele país e daquele povo. Pois sabe que ele, cidadão sul-americano assim como eu e você, caro leitor, também é parte integrante deste processo histórico.
Eis a carta:
Eleições 3 de dezembro, Caracas, Venezuela
Escrevo sobre aquilo que venho observando e participando, desde setembro de 2006. Trato aqui do processo eleitoral, dentro do qual as únicas posições em debate eram por Chávez ou contra ele. Sou brasileiro e estou há pouco tempo por aqui, portanto, não vivi as transformações que o presidente venezuelano tanto proclama, de forma que me permita fazer juízo sobre o período de 7 anos do Governo "revolucionário Bolivariano". Lanço, então, algumas conversas, impressões e paixões com as quais tive contato, sem ocultar minha simpatia por este povo e governo.
Chego a essa data, 07/12/06, com um certo alívio, diante de tanta especulação sobre o desfecho das eleições. Fantasias e terrorismo que tentavam definir o voto desta gente. Aconselharam-me a estocar comida, coisa que muita, mas muita gente fez. As prateleiras dos grandes e pequenos mercados ficaram vazias na semana que antecedia o sufrágio. O que mais se questionava não era o resultado das urnas, pois esse parecia pré-anunciado pela clareza que tem o povo deste país, expresso no orgulho de vestir vermelho. O que nos deixava apreensivos era a seqüência dos fatos, o dia seguinte. Diante do trauma do golpe de 11 de abril, anunciava-se a possibilidade, quase viva nos discursos da oposição, de um não reconhecimento do resultado das urnas. Esta negação transbordaria em violência, diante de tamanha paixão que move a política por aqui. A oposição declamava aos 7 ventos que, caso ganhassem, a violência não seria uma possibilidade, mas sim uma certeza. 30% deste país está diretamente envolvido com o governo, seja através das missões ou pelos conselhos comunitários, não estando disposta a abrir mão dos avanços populares desses últimos sete anos.
Pra quem não sabe, existe oposição na Venezuela, com todos os direitos e liberdades políticas. Com direito a todo cinismo e velho estilo das oligarquias Latino Americanas. Seu principal candidato era Manuel Rosales, mas é bom assinalar que eram quase 30 candidatos, ao todo. Seu discurso era pronunciadamente à classe média, com o lema de "ABAJO Y A LA DERECHA" ou "ATRÉVETE A CAMBIAR". Sua principal proposta era um cartão de débito chamado "MI NEGRA", que já começou a ser entregue a seus eleitores antes das eleições e que, segundo a proposta, seria dado a 2.500.000 de famílias venezuelanas. Isso significa, no mínimo, 7.500.000 de pessoas, sendo que a Venezuela tem 25.000.000 de habitantes, ou seja, quase um terço de sua população seria beneficiada. Para essas famílias seria transferida, diretamente, uma quinta parte da renda petroleira venezuelana, que corresponderia de R$ 600 a 1000 para cada uma (e a Globo nos diz que é Chávez o populista mór da AL). Sua outra proposta era o incremento da segurança e defesa da propriedade privada, junto com a qual sempre vinha a foto de um menino de rua. Chávez dizia, para fechar seu programa eleitoral, que os venezuelanos deveriam votar com AMOR, o que Manuel Rosales rebatia dizendo que o AMOR PODE MATAR, que também virou um lema seu.
Tive a oportunidade de ver Chávez falando e de perceber a paixão ele move nas pessoas. Em todas as oportunidades que o povo tem de ouvi-lo, um mar vermelho toma conta da cidade. As pessoas levam quadros que talharam em madeira, cartas pessoais ao seu "Comandante", que é como o chamam. Vão em comunidade, em família ou sozinhas. Não são poucos os barbados que aprenderam a chorar por outro homem. Questiono-me sobre tanta adoração, fico a pensar sobre todas aquelas categorias depreciativas com que nos enchem a mídia brasileira, como messiânico ou populista. Pessoas humildes me falam, então, sobre o papel unificador que tem seu líder, que conseguiu sentar em uma mesma mesa campesinos, estudantes, marxistas, esquerdistas, velhos e jovens, homens e mulheres para discutir e construir o que hoje chamam CHAVISMO. Mas sempre me alertam de que o objetivo, e isso não pode depender de uma só pessoa, é o SOCIALISMO do séc. XXI para Venezuela e América Latina.
Através dos conselhos comunitários e de sua nova Constituição, a Venezuela pretende transformar sua fórmula democrática, que deixaria de ser representativa, para transformar-se em participativa e protagônica. Tenho visto muito êxito nos bairros e favelas, mas este ainda vai ser um processo longo e cheio de contradições. Por hora, o que se vê é mesmo o vazio de um sistema eleitoral, onde as diferenças são expressas com desperdício de papel e dinheiro, onde o que mais se cria é lixo, visto que tanta publicidade perde todo o sentido de um dia para o outro (a não ser para mim e para alguns amigos a quem me dirijo, futuros historiadores e colecionadores de cacarecos). Opiniões distintas nos tornam inimigos e o encontro entre VERMELHOS e AZUIS é brindado com gritos e surdez. Quando será que o maior dia de expressão política será aquele em que nos sentaremos para criar e crescer, coletiva e individualmente? Quando seremos coerentes para entender que fazer política é Cuidar do outro, da nossa comunidade, cidade, país e principalmente do nosso Meio Ambiente? Para isso teríamos que ter igualdade de oportunidades, enquanto não, segue a resistência.
Chávez ganhou com 63% dos votos. Este número representa pouco, o que mais me salta aos olhos é ver tanta gente entrando nas muitas universidades criadas, ver os conselhos comunitários transferindo o protagonismo para os bairros e indivíduos comuns. Ver as missões alimentando o povo com comida e cultura, todas realizações desse governo . É maravilhoso presenciar o despertar dessa sociedade, que há tanto adormecia no leito de uma cultura petroleira. Cheia de ilusões de riqueza que viria de um óleo, que lhes escorria aos dedos, para transformar-se em ouro no bolso alheio.
VIVA AMÉRICA LATINA, QUE SEJA DIGNA E SOBERANA!
Yarssan Dambrós