sexta-feira, novembro 24, 2006

27 de novembro. E daí?


O dia 27 de novembro é lembrado em Cuba como o Dia do Luto Nacional. Foi neste mesmo dia do ano de 1871 que oito estudantes de Medicina, entre 16 e 21 anos, foram fuzilados a mando do General Blas Villate y de la Hera, ou Conde de Valmaseda. Segundo relatos da época, eles foram injustamente condenados por danificar o túmulo de um jornalista espanhol. Corria a Guerra dos Dez anos (1868-1878), em que os cubanos lutavam por sua independência do reino espanhol. Portanto, qualquer ato de rebeldia era imediata e duramente reprimido.

Alonso Álvarez de la Campa y Gambá, Anacleto Bermúdez y González de Piñera, José de Marcos y Medina, Ángel Laborde y Perera, Juan Pascual Rodríguez y Pérez, Carlos de la Torre y Madrigal, Eladio González y Toledo e Carlos Verdugo y Martinez foram presos pelo próprio governador da província de Havana em plena sala de aula e submetidos a um julgamento pra lá de tendencioso, sob as ordens do General Crespo, substituto de Valmaseda, que se encontrava na Espanha. Um grupo de voluntários espanhóis, amotinados em frente ao edifício onde ocorria o julgamento, protestou contra a condenação. Um novo julgamento então foi realizado, mas a condenação à pena capital foi mantida. De volta à Ilha, Valmaseda referendou o veredicto e, no dia 27 de novembro de 1871, os oito estudantes foram fuzilados.

Las Terrazas

Lago San Juan/Foto:www.lasterrazas.cu

O complexo turístico de Las Terrazas localiza-se a cerca de 50 km de Havana. Situado em Sierra del Rosário, o parque de cinco mil hectares foi declarado pela Unesco Reserva da Biosfera pela experiência bem-sucedida de desenvolvimento sustentável. O projeto teve início em 1968, quando se notou um processo de aterro do Lago San Juan e de desmatamento da região. Hoje vivem lá cerca de mil moradores que são capazes de preservar a região e conviver em harmonia com o meio ambiente sem intervir de maneira excessivamente predatória na natureza. A presença dos turistas também é controlada, porém constante. Os visitantes podem praticar caminhadas, passeios a cavalo e tomar banho nos lagos e cachoeiras da região. Mais informações através de (http://www.lasterrazas.cu/).

Quando estava em Cuba fui convidado por Soledad a visitar o parque. Conhecemos a casa memorial de Polo Montañes, espécie de cantor sertanejo cubano que morreu cedo e ainda hoje é cultuado no país. Lá vive seu irmão, que tenta vender alguns cds aos visitantes que param ali. Chegamos à margem do Lago San Juan, um local lindíssimo e realmente muito bem preservado, por sinal. Bem como as quedas d’água do rio de mesmo nome. As águas cristalinas permitem o mergulho e a prática da natação. Os restaurantes em Las Terrazas servem a típica e excelente culinária cubana.

Depois do almoço, sentamo-nos à beira do lago para falar amenidades. Alguns sentiam falta de seus países, outros se queixavam de seus cônjuges e outros mais, apenas escutavam. Hora, hora e meia depois, o grupo foi se dissipando, sobrando apenas Soledad e poucos amigos. Fabianne era uma belga de seus 50 e poucos anos. Contou que viajara a Cuba acompanhando o marido em uma viagem de negócios. Funcionário da cervejaria belgo-brasileira, Inbev, Gerard estava no país para representar a empresa que, em 1997, comprou as principais marcas de cerveja da Ilha: Cristal, Mayabe, Bucanero e Bucanero Malta, e ainda empurrou, literalmente goela abaixo dos cubanos, a alemã Beck’s. Fabianne contou ainda que, assim como Gerard, outros empresários estrangeiros estavam no país, preparando as bases capitalistas do que consideravam vir a ser um novo país após a morte do comandante-em-chefe.

Soledad também falou. Seu pai era um alto funcionário do governo cubano e vivia em uma confortável casa em uma cidade próxima de Sierra Escambray. Admitiu que ser membro do governo cubano o concedia alguns benefícios. Como o quê, perguntei. Comida boa e farta, por exemplo, respondeu. Não se pode deixar transparecer que se leva uma vida muito luxuosa. A discrição é uma qualidade imprescindível de um homem e a ostentação pode ser fatal a quem trabalha para Fidel. A cada cinco anos, mais ou menos, o comandante decide fazer um faxina no governo e manda algumas dúzias de políticos corruptos para o paredón, sem exceção nem mesmo para os amigos.

Os pais se divorciaram havia muitos anos. A mãe, dona Ivis, então se casou com outro homem com quem Soledad não se dava muito bem. Anti-castrista ferrenho, Miguel não gostava do envolvimento da enteada com política, muito menos com o governo. Até que certo dia, durante uma áspera discussão, Miguel proibiu Soledad de voltar à casa onde sua mãe morava. Dona Ivis ficou muito triste, mas resignou-se e recolheu-se à sua condição de esposa obediente. A tristeza de Soledad virou fúria e ela rogou aos céus que fizessem justiça a Miguel. Certo dia, ao cair da tarde, conta, fui até o jardim da minha casa. Orei profundamente e, olhando para o sol que se punha no céu avermelhado, pedi aos orixás que dessem àquele homem o tratamento que ele merecesse, qualquer que fosse ele, lembra. Dias depois, Miguel morreria em um acidente automobilístico.

Os anos se passaram e Soledad também perderia o marido em tragédia semelhante dentro de um carro. Desde então, vivia em uma casa simples no município de Cojimar, a cerca de uma hora de Havana. A mãe, a avó, duas irmãs e algumas sobrinhas viviam no andar de baixo. Soledad, o sobrinho Carlos, Salsicha e Cuquita, suas cachorras, no puxadinho construído no andar de cima. Todas as dificuldades a faziam querer sair do país, dar aulas em uma universidade espanhola, como já havia sido chamada.

Contei o caso de milhares de brasileiros que saem do país a cada ano rumo à América do Norte e Europa para tentar a sorte como pedreiros, garçons, faxineiros, lixeiros, marceneiros, mecânicos etc. No Brasil, ao contrário de Cuba, grande parte da população depende de um sistema de saúde deficiente que deixa idosos morrerem nas filas dos hospitais à espera de atendimento médico, não sabe ler ou consegue apenas assinar o próprio nome, vive problemas gravíssimos de segurança pública, fruto da extrema desigualdade social e habita em locais precários, como barracos erguidos em cima de morros ou às margens de rios sem condições mínimas de saneamento. O Brasil, assim como Cuba, é um país de mierda, constatou Soledad.

Fiquei com vontade de perguntar o que ela diria então de países como o vizinho caribenho Haiti, sem governo, mergulhado em uma guerra civil sem fim; a Índia, em que a maioria esmagadora de seu povo não tem o que comer, as vacas pastam sossegadamente pelos campos, mas é considerada uma potência emergente por seu suposto crescimento econômico; a Itália, que escolhe o neofascista Berlusconi como primeiro-ministro, ou os Estados Unidos que elege e reelege o acéfalo fundamentalista George W. Bush.

Mas, ao contrário, preferi convidar a todos para tomarmos uns mojitos e cubas libres à beira do Lago San Juan, onde enchemos a cara e nos refestelamos debaixo das primeiras estrelas que já despontavam no céu àquela hora.

terça-feira, novembro 14, 2006

Trinidad


Trinidad localiza-se na província de Sancti Spiritus, a sudoeste de Havana. Próximo dali fica Sierra Escambray, de onde Che Guevara comandou as tropas que desceram para tomar o poder nas proximidades (Fidel e Camilo Cienfuegos concentraram-se em Sierra Maestra, próximo a Santiago de Cuba). Cidade histórica, é possível percorrer a pé Trinidad em poucas horas, passando pela frente da praça, algumas igrejas, bares e um cemitério. A economia é basicamente sustentada pelo turismo, como todo o país. Por isso, os visitantes são sempre alvos de abordagens de pessoas pelas ruas. Um simples conselho para o almoço em um bom restaurante da região pode ser comprado por alguns pesos cubanos.

No centro histórico da cidade, as ruas são calçadas por paralelepípedos. Mas, saindo dali, chega-se a uma área rural, onde mesmo um Buick 59 é visto com curiosidade. Os homens jovens saem cedo para a labuta no roçado, as mulheres ficam a cuidar da casa, crianças vão estudar na escola mais próxima, enquanto os moradores mais idosos passam os dias em suas cadeiras de balanço.

Reza a lenda que certa feita passou por ali um turista, animal estranho naquelas paragens. Com óculos escuros, mochila nas costas e máquina fotográfica nas mãos, logo despertou a desconfiança dos locais. Enquanto os adultos o observavam de longe, as crianças se acercaram. Foram ver o que era aquilo. O mais atirado do grupinho de cinco puxou conversa. Perguntou de onde vinha aquele moço. O forasteiro respondeu e fez que ia sacar uma foto. Logo os meninos se enfileiraram. Fizeram pose para os flashes. Uma, duas, cinco, dez fotos. Era a novidade, o acontecimento do dia. Batia a foto e os meninos a viam automaticamente no view finder do equipamento.

O turista se cansou e foi saindo de fininho. Quando o menininho esperto o chamou de volta: un peso, cobrou. Surpreso, o moço ficou sem reação diante de tal atrevimento. Mas os meninos não arredaram pé. Acuado, então o visitante coçou o bolso, já vazio perto do fim da viagem, sacou algumas moedinhas e as distribuiu entre os pequenos negociantes, fazendo questão de dar a de menor valor ao mais atrevido e a mais valiosa ao mais tímido. A alegria das crianças era indisfarçável. Pareciam que haviam ganho o presente de natal, o ordenado do final do mês, ou, por que não, o cachê de uma sessão de fotos como modelos de um Sebastião Salgado. “Vou comprar um suco para mim”, gritou um deles, pulando e saindo em disparada.

Dia Internacional do Estudante

No dia 17 de novembro é comemorado, em muitos países, o Dia Internacional do Estudante. Foi neste dia do ano de 1939 que nove estudantes tchecoslovacos foram fuzilados pela polícia alemã (Gestapo), após 20 dias de manifestações contra a ocupação nazista no país. Os confrontos já haviam deixado uma vítima fatal, o estudante de medicina Jan Opletal, morto no dia 11 de novembro nas ruas de Praga. Seis dias depois, as tropas de Hitler agiram na calada da noite fechando universidades, repúblicas estudantis e invadindo a Sede da Federação Central de Estudantes Tchecoslovacos. Para pôr fim ao que chamou de “distúrbios e desobediência popular”, o führer ainda ordenou a deportação de mais de 1200 estudantes para os campos de concentração de Sachsenhausen-Oranienburg, próximo a Berlin. Detalhes em (www.une.org.br/home2/radar_estudantenet_jun_2005/m_1713.html)

Coincidência ou não, foi também em 17 de novembro de 1945 que Fidel Alejandro Castro Ruz ingressou no curso de Direito da Universidad de La Habana. Nascera 19 anos antes, filho de Ángel Castro, rico latifundiário espanhol com Lina Ruz, que trabalhava nas propriedades deste. Ángel era casado com Maria Luisa Argota, com quem teve dois filhos. A mulatinha de 14 anos chega à casa para trabalhar e logo encanta o espanhol com brejeirice e graça. Os dois iniciam uma relação extraconjugal que resulta no nascimento de Ângela, Ramon e Fidel. Com o nascimento do terceiro filho do marido com a serviçal, Maria Luisa sai de casa e entra com o pedido de divórcio litigioso na Justiça contra o ex-marido. Numa tentativa de livrar-se do flagrante, Ángel então envia Fidel a Santiago de Cuba com quatro anos de idade e, apenas aos 17, é reconhecido legalmente pelo pai.

Segundo relato de amigos, a rejeição sofrida pelo jeito rude e distante que o pai lhe dispensava, levou Fidel a querer destacar-se em todas as atividades que exercia. Seu porte avantajado o ajudou nos esportes, tornando-se campeão universitário em diversas modalidades. Já os inimigos, o acusam de ter herdado a megalomania e o autoritarismo de Ángel, fazendo buscar desde e para sempre o poder acima de tudo. Durante os anos como universitário, travou embates políticos dentro da instituição, quando fez parte da União Insurrecional Revolucionária e da Federação Estudantil Universitária, da qual aspirou ao cargo de líder, sendo derrotado nas urnas. Em sua formatura em 1950, Ángel não esteve presente. Nove anos mais tarde, conquistaria o poder através da revolução.

Por isso, até hoje, o dia 17 de novembro é comemorado em Cuba e Fidel é saudado por seu povo. Em 2005, voltou à Universidade onde fez um discurso de oito horas, transmitido ao vivo pelas emissoras para todo o país e reprisado repetidas vezes durante vários dias seguidos. Entre os assuntos, relembrava os tempos de estudante, o triunfo da revolução, destacava os êxitos de seu governo, atacava o imperialismo ianque e, por fim, anunciava novas medidas adotadas em diversas áreas da administração pública. O povo ouve atentamente seu comandante e repercute as notícias. Dono de um estilo próprio que inspirou outros líderes da América Latina, Fidel fala sem interlocutores, tendo todo o aparato do Estado e da imprensa a seu favor.

Por toda a universidade, as celebrações são muitas. Nas escadarias do acesso principal, estudantes levam faixas com mensagens de apoio, como a que repetia uma frase do comandante: Aqui me hice revolucionário. No jardim, onde seria montado o palco para o espetáculo musical da noite, uma enorme bandeira mostrava a face de outro ícone da revolução: Ernesto Guevara de la Serna, El Che. Nas classes para estrangeiros, os alunos aprendem a letra de Guantanamera, canção-símbolo do povo, escrita pelo herói nacional da independência cubana, José Martí em parceria com Joseíto Fernandéz. Em frente ao salão denominado Aula Magna, centenas de universitários – cubanos e estrangeiros – se espremem para esperar pela chegada de Fidel. Crianças do ensino primário são postadas na frente de onde deve parar a comitiva e ensaiam uma canção em sua homenagem. Os poucos estudantes escolhidos para assistir ao vivo o discurso são eleitos dentre as lideranças estudantis.

De repente, um cochicho toma conta dos presentes. Todos se entreolham e observam ansiosamente o portão de entrada da universidade. Apreensão, mãos suadas, quase trêmulas. Mesmo aqueles que não o admiram estão lá para ver se o homem é mesmo de carne e osso. Um carro desses da década de 50, com vidros fumes entra rápido portões adentro e freia quase em cima da multidão. Pelas portas traseiras, saem, um de cada lado, dois homens altos, carrancudos, ternos negros, metralhadoras nas mãos. Imediatamente, outro carro idêntico repete a mesma ação, quase batendo no pára-choques do primeiro. Ninguém sai. Como em um filme de ação estadunidense, um terceiro automóvel faz a mesma coreografia alguns segundos depois, saindo mais dois seguranças como clones dos homens do primeiro carro.

Os quatro leões de chácara voltam-se para as portas traseiras do segundo automóvel e de dentro dele sai Fidel. Vestido com sua inconfundível guaiabeira verde-oliva, coturnos negros, o comandante-em-chefe segue rumo à multidão. Suas feições nem de longe lembram a do guerrilheiro que desceu de Sierra Maestra rumo ao comando do país, onde se mantém há 47 anos resistindo ao bloqueio econômico, atos terroristas e tentativas de assassinato. A menos de cinco metros de Fidel, os estudantes podiam ver seu rosto envelhecido, os movimentos lentos, a expressão serena. Assistiu à apresentação das crianças, riu e brincou com elas. Depois entrou e proferiu seu pronunciamento de oito horas, sem se sentar e, por três ou quatro vezes apenas, tomar goles de água.

segunda-feira, novembro 06, 2006

El capitán

O salário mínimo em Cuba gira em torno de MN 250 (MN = moneda nacional, ou pesos cubanos) ou US$ 10. Professores universitários e médicos podem chegar a ganhar o dobro disso. Cada cidadão possui uma caderneta de alimentação onde constam alguns itens que podem ser comprados por preços subsidiados pelo govrno, como papel higiênico, sabão em pó, arroz e pouca coisa mais. Por isto, os cubanos buscam maneiras alternativas de ganhar algum dinheiro a mais para adquirir produtos que não estejam dentro do considerado “básico” pelo Estado. Nos últimos 15 anos o turismo cresceu muito em Cuba. Trabalhar formal ou informalmente com estrangeiros é uma das maneiras de se obter dólares ou, até mesmo, deixar o país a convite de um deles. Motoristas de táxi e camareiras de hotel, por exemplo, são profissões emergentes dentro desta nova lógica neo-socialista-cubana.

Por isso, muito profissionais “liberais”, como engenheiros, advogados, jornalistas acabam deixando seus ofícios para se dedicarem a atender os turistas que chegam ao país. Este também é o caso de ex-atletas profissionais que, ao abandonarem o desporto, passam a atuar no setor turístico. Tradicional formador de campeões em diversas modalidades, Cuba orgulha-se de promover desde a tenra idade a prática de esportes nas escolas. Além de um mecanismo de inclusão social e saúde, o êxito internacional de seus atletas não deixa de ser uma propaganda para o regime socialista. Um problema enfrentado pelas equipes de hoje em dia é o grande número de desportistas que migram para outros países, principalmente os Estados Unidos, seduzidos pelos altos salários pagos em dólares. Basta olhar a escalação de qualquer equipe que dispute a liga norte-americana de baseball para dar-se conta da esmagadora maioria de sobrenomes hispânicos. Como punição, esses atletas deixam de ser convocados a representar o país em competições internacionais.

O tradicional clube de jazz “La Zorra y El Cuervo” é parada obrigatória para os amantes do gênero que chegam a Havana. Localizada na Rua 23, ou mais conhecida como “La Rampa”, a casa costuma receber, diariamente, muitos turistas que pagam o equivalente a um mês de trabalho para um cubano comum. Muitos músicos consagrados do gênero no país tocam por lá, como o guitarrista Pablo Menéndez, o pianista Roberto Fonseca e o baterista Gilberto Valdés. Ao chegar ao local, o cliente é recebido na entrada e acompanhado até a sua mesa onde se acomoda para assistir ao show. Esta função é exercida pelo capitán, que é responsável por tudo que se passe no salão da casa noturna. Uma espécie de gerente da casa. Em La Zorra, el capitán atende pelo nome de Ricardo Vantes.

Negro, 1,90m de altura, bem articulado, simpático e muito bem vestido, hoje Vantes exerce uma atividade bastante diferente da que costumou praticar nos últimos 14 anos. Até 1998, ele era o oposto da equipe de vôlei que encantou o mundo naquela década e aterrorizou os brasileiros em pan-americanos e olimpíadas. Na final do Mundial de 90, Vantes, Joel Despagne, Diago, Hosvanis, Osualdo e Valdez derrotaram o Brasil por 3 sets a 2. Quando a partida estava 2 a 0 para os brasileiros, Vantes entrou em ação e ajudou seu time a virar o jogo e acabar com a nossa festa em pleno território verde-amarelo. “Aquele foi o jogo da minha vida”, declara.
Nascido em Camagüey, província a leste de Havana, o jogador mudou-se para a capital, quando ainda era juvenil. “É aqui que tudo acontece no voleibol cubano”, explica. Em 14 anos como atleta da seleção, conquistou, além do título em cima dos brasileiros, a Copa do Mundo de 90, disputada no Japão, a medalha de bronze no Mundial de 93 e o quarto lugar nas Olimpíadas de Atlanta, em 96. O ex-jogador se lembra muito bem da rivalidade existente entre as duas escolas latino-americanas. “Era como um choque de trens”. Mas Vantes guarda com saudades os velhos amigos brazucas. “Gostaria de reencontrar os jogadores da minha geração, como (Marcelo) Negrão, Tande e Kid. Dentro de quadra a disputa era acirrada, mas fora dela, a relação era ótima”, conta.

Depois que se aposentou como atleta, em 98, Vantes cursou Educação Física e depois Marketing. Chegou a exercer a função de manager da seleção feminina e também integrou a Comissão Nacional de Vôlei de Praia. Além das necessidades óbvias, o ex-atleta explica as outras razões da sua guinada profissional. “Gosto de conhecer um pouco de cada coisa e a música sempre me cativou”. Ele se considera realizado como ex-atleta e reconhecido em seu país, mas agora quer buscar novos desafios. “Quando era jogador, nunca pensei em trabalhar aqui, mas agora quero vencer também nesta área”, assegura.

Hoje, Vantes se mostra triste com a atual safra de jogadores cubanos. Para ele, a geração é mais alta, mas falta amor à camisa. “Antes, tínhamos mais desejo de ganhar e representar o nosso país. Atualmente, embora eles tenham mais condições, pensam mais em ganhar dinheiro e sair de Cuba”, lamenta. “Minha geração era mais patriota, se entregava mais ao vôlei”, analisa o ex-atleta que, ao se aposentar na seleção, também teve uma passagem pela Grécia em 96 após os Jogos Olímpicos. Mesmo assim, o “capitán” confia no futuro da equipe nacional. Ele se rende à atual supremacia do vôlei brasileiro e revela o interesse dos dirigentes cubanos em realizar um intercâmbio com os nossos treinadores. “O Brasil hoje é o melhor do mundo, tanto no masculino, quanto no feminino e precisamos desta troca de informações para voltarmos ao topo”, afirma.

sexta-feira, novembro 03, 2006

El viejo marinero griego

Na década de 60, a Guerra Fria estava em seu auge e Cuba era uma novidade no cenário político internacional. Os rapazes que desceram Sierra Maestra para derrubar Fulgêncio Batista entraram para a história como os últimos românticos de um tempo que estava por vir. Fidel subiu ao poder levando consigo o sonho de milhões de jovens que pensavam que, enfim, o mundo seria um lugar justo. Os uniformes guerrilheiros, as longas barbas, as boinas passaram a ser referência estética de toda uma geração. Era um jeito mais charmoso de ser comunista do que o estilo durão dos soviéticos. A morte prematura de Guevara o eternizou no ideário de todos como herói e serve até hoje como sustentação de um governo do qual já não mais fazia parte quando foi emboscado em terras bolivianas. Mas isso já é outra história.

O fato é que em 1964 o debate ideológico era muito intenso, fervoroso, apaixonado. Todos acreditavam que o mundo estava dividido em dois. Como num Flamengo x Vasco, comunistas e capitalistas acreditavam que seu time era o melhor e que o adversário merecia ser liquidado para o bem da humanidade. Comunistas de todo o mundo iam até Havana saber como vivia aquele povo e como andava a revolução. Athanasios chegou à capital cubana em março daquele ano em um navio de bandeira grega. Havia lido acerca do triunfo dos revolucionários e estava ansioso em pôr os pés na Ilha. No navio, entre um turno e outro de trabalho, lia o Manifesto Comunista, O Livro Vermelho, O Estado e a Revolução, entre outros.

Desembarcou no porto da cidade maravilhado. Logo foi conhecer as belezas da nova terra. Encantou-se com a beleza arquitetônica, o clima tropical e a amabilidade das pessoas. Aprendera algumas palavras de castelhano quando esteve na Espanha meses atrás. Procurava conversar com as pessoas, saber o que pensavam e o orgulho que sentiam por seus heróis. Parou em um bar para beber algo. Encontrou alguns companheiros de viagem e ficaram a rir e contar o que de novo haviam visto.

Subitamente, ouviu uma áspera discussão vinda da calçada. Um homem negro, alto e forte gritava palavras duras contra uma mulher que Athanasios não conseguia entender. Ela não se fazia de rogada e reagia, gritando de volta. Fazendo-se valer do seu tamanho, o homem desferiu-lhe um soco no olho esquerdo, que a fez tombar na hora. O grego era de um tempo, de um país e de uma família que não sabiam ver uma mulher apanhando e ficar quieto. O sangue subiu-lhe à cabeça e o jovem marinheiro foi até lá tomar satisfações. Não se lembrou que era menor que o agressor. Como um bólido, surgiu na frente homem, pegando-o de surpresa, e acertou-lhe o queixo, fazendo-o tombar. Montou em cima do brutamonte e continuou a bater até que a turma do deixa disso interviesse. Os amigos do agressor o tiraram de cena, deixando para Athanasios os louros da vitória, seguido dos aplausos de todos no bar.

Só então foi ver o que acontecera à moça. Já havia sido socorrida pela irmã e parecia passar bem. Chamava-se Mercedez. Tinha 22 anos e era atriz. Membro do Partido Comunista, possuía os mesmos ideais libertários de Athanasios e grande parte do povo cubano. O homem que a violentou era um antigo namorado ciumento e inconformado com o término do relacionamento. Apesar da ideologia comunista comum, o homem cubano não fugia do estereótipo do macho latino, orgulhoso de seu falo e possessivo com aquelas que consideravam “suas coisas”, entre essas, as mulheres.

Athanasios e Mercedez logo se encantaram um pelo outro. O ato de bravura de um jovem-marinheiro-grego-comunista fez lembrar o ideal romântico dos folhetins, que as jovens moças latinas liam àquela época. Nos livros, o príncipe chegava de um reino distante para libertar a donzela das garras do tirano e viviam felizes para sempre. A jovem-e-bela-atriz-comunista-que-se-rebelara-contra-o-seu-opressor também deixara o forasteiro fascinado. Depois de um mês, a tripulação do navio grego deixou o território caribenho. Athanasios e Mercedez se despediram sem a certeza de que voltariam a se encontrar algum dia. Passaram a se escrever freqüentemente e, em uma dessas cartas, Mercedez enviou uma foto de sua filha.

Quarenta anos depois, Athanasios voltou a Cuba, mas, desta vez como turista. Vivia em Montreal, Canadá, com mulher, filhos e netos. Chegara à capital e matriculara-se no curso de espanhol para estrangeiros da Universidad de Havana, na turma ministrada por Soledad. Torna-se um senhor calvo, mas mantivera a aparência jovial, forte, alto e comunicativo. Sempre procurava estar perto dos mais jovens, gostava de contar seus "causos" de juventude, entoar canções de seus tempos, bailar salsa, e conversar com desconhecidos pelas ruas.

Em uma das aulas, el viejo marinero griego contou o caso de Mercedez, como se conheceram e fez supor que gostaria de revê-la. Soledad então ligou para uma rádio da capital que transmitia um programa especializado em promover encontros inusitados. A professora passou as informações e deu o endereço de Mercedez que Athanasios – pasmem – ainda recordava 40 anos depois. Soledad pediu que a avisassem caso tivessem qualquer notícia.

Dias depois, uma mulher retornou a ligação. Maria se dizia filha de Mercedez e demonstrava muita contrariedade com a procura pela mãe. Soledad explicou-lhe o caso, disse que um velho amigo grego estava de volta à Havana e gostaria muito de rever a mãe da moça. Esta, por sua vez, não quis conversa, disse que Mercedez não queria saber de tal amigo e bateu o telefone com força pondo fim ao diálogo. Soledad contou o caso a Athanasios que se pôs inconsolável. Não entendia por que a moça queria impedir a mãe de encontrar um antigo amigo.

A tristeza, no entanto, não tirou o ânimo do velho marinheiro. Ele, que já vencera tantas vezes mares bravios, tempestades e até icebergs, não haveria de sucumbir logo agora, menos jovem, porém mais experiente. Contratou um motorista de táxi, que fazia ponto em frente ao hotel em que estava hospedado. Mandou que percorresse toda a Calle Infanta, rua onde Mercedez morava 40 anos atrás. Foram de prédio em prédio, de casa em casa, um pelo lado par, outro pelo ímpar. Perguntavam por Mercedez, mãe de Maria. Muitos não a conheciam, mas outros foram dando outras dicas de quem poderia ser aquela senhora. Estava com 62 anos e sua filha, 40. A mãe tornara-se professora primária e dava aulas de teatro para adolescentes. Vivia com três filhos, dois netos e o marido. Casara-se há 30 anos com Marcos, com quem tivera Guadalupe e Rafael. O destino do pai de Maria era desconhecido. Alguns diziam ter morrido, outros, ido embora para o estrangeiro. Mas Marcos a criara e ela o tinha como real progenitor.

Já passava das cinco da tarde, mais de sete horas de busca, quando Athanasios tocou no número indicado por vizinhos onde Mercedez moraria. Um senhor de seus 70 anos foi ver quem era. Marcos, que a esta altura já sabia da história contada por Maria, abriu a porta. Ao ouvir a voz de Athanasios, Mercedez se dirigiu até a porta. Maria, reticente, ficou um passo atrás da mãe com cara de poucos amigos. Ao se reverem, depois de 40 anos, os dois velhos amigos não conseguiram conter a emoção. As lágrimas rolaram face abaixo de ambos e o abraço apertado durou alguns minutos sem que ninguém no recinto dissesse uma só palavra. Depois, o velho marinheiro cativou a todos com seu carisma. Conversaram e riram muito. Athanasios brincou com os netos de Mercedez, aconselhou-se com Marcos, relembrou os bons tempos com a amiga, contou piadas aos mais jovens e Maria chegou até a sorrir.

No dia seguinte, voltou convidado para o almoço. O grego levou presentes a toda a família que retribuiu com fotos e lembranças do país. Depois, trocou endereços de correspondência e despediu-se de todos antes de partir. Três meses após o regresso àquela que um dia fora a terra dos sonhos de um jovem marinheiro, Athanasios deixou Havana de volta ao Canadá. Sentia que pagara sua dívida com o passado. Sua missão estava cumprida e, enfim, poderia morrer em paz.

quarta-feira, novembro 01, 2006

Jineteros



Os jineteros são presenças constantes nas ruas de Havana. Ao cair da noite ou mesmo à luz do dia não é difícil identificá-los. Cabelos crespos e barba bem aparados, bigode fino bem rente ao lábio superior, camisetas sem manga deixando à mostra os músculos bem torneados do braço e calça de nylon justa evidenciando os glúteos. O estereótipo do homem cubano que toda mulher estrangeira sonha viver um tórrido romance marginal, como nos filmes estadunidenses.

A abordagem não é menos conhecida. Pelas ruas, nos bares, nas saídas de concertos musicais, teatros ou hotéis, lá estão eles. Aproximam-se muito simpáticos perguntando “de que país eres” e se “no le gustaria conocer mejor la ciudad”. Uma característica típica é a insistência. Não desistem na primeira recusa. Seduzem a vítima falando da beleza dos monumentos de Havana Vieja, das Playas del Leste e dos drinques da Bodeguita del Médio, onde Hemingway tomava das suas. Encantados e ávidos por conhecer as maravilhas pelas quais já ouviram falaram nos quatro cantos do mundo, os desavisados turistas acabam topando.

Porém, há outras formas de aproximação. Muitos estrangeiros procuram a Universidade para cursos de línguas, dança, entre outros. Dentro da própria instituição há uma agência de turismo que facilita o ingresso dos de fora, mesmo que não tenham o visto de estudante - oficialmente, condição para se estudar no país. Por isso, muitos jineteros se infiltram dentro da própria Universidade e, disfarçados de professores, passam a abordar turistas.

Outra maneira são as aulas de dança cubana espalhadas por todo o país. Salsa, rumba, merengue e suas variações. Encantadas pelo rebolado latino envolvente, as lourinhas de olhos claros da Suécia, Bélgica, Áustria, Alemanha e Canadá matriculam-se em um desses cursos para aprender aquela arte tão caliente. Com o corpo colado e as mãos do professor em torno da cintura, ouvem ao pé do ouvido o sussurrar das instruções no sensual idioma espanhol. Faça uma pesquisa: pergunte a qualquer mulher estrangeira que já tenha visitado Cuba se não teve um namorado, ou um caso sequer com um rapaz da Ilha. Claro que toda generalização é perigosa, mas hoje em dia, um casamento com uma estrangeira é a maneira mais fácil de deixar o país, desejo cada vez maior entre os cubanos desde a década de 90. As autoridades combatem duramente a ação dos aproveitadores, porém não fazem nenhuma campanha aberta para não afugentar os visitantes.

* * * * *

Karen nasceu na Áustria há 37 anos. O casamento com Walter não ia lá muito bem e por isso decidira passar um mês de férias com a irmã Kathlen e conhecer as maravilhas do Caribe. Inscreveu-se no curso de espanhol para estrangeiros e matriculou-se em uma turma de iniciantes de salsa. Lá conheceu Roberto, o professor. Karen, apesar de já ter passado do esplendor da forma física, ainda tinha os seus encantos. Mantinha o corpo saudável com boa alimentação, natação e ginástica toda manhã. O abdome definido e as pernas bem torneadas causavam inveja a qualquer garotinha de 20 e poucos anos.

Chegou à turma sem conhecer lhufas do bailado latino. O que sabia sobre dança era o exemplar nórdico-germânico de cintura dura e feições congeladas. A irmã a acompanhara nas primeiras vezes, mas desistira pouco tempo depois. Considerou aquele tipo de representação artística quase um ritual do acasalamento. Karen, porém, continuou a freqüentar as aulas. Por sua dedicação especial, Roberto a tomara como par mais constante nas demonstrações de novos passos.

Certa feita, ficou depois do horário para aprimorar um movimento do qual ainda não estava muito segura. O professor dispensou os demais funcionários da Academia de danza para que a ensinasse com mais esmero. Não queria que a moça se sentisse constrangida. A intimidade da pareja era cada vez maior. O bailado dos dois corpos era tão sincrônico que pareciam apenas um. Não era possível saber onde terminavam os movimentos de um e onde começavam os do outro. Até que uma hora a harmonia ficou tão perfeita que Roberto e Karen chegaram ao êxtase simultaneamente.

A irmã Kathlen achava muito estranha tal dedicação. O dia de voltar para casa se aproximava e Karen não parecia tão entusiasmada assim em retornar à terra natal. Depois de alguma insistência da irmã, Karen acabou confessando que estava envolvida por Roberto. Contou sobre o dia na Academia, do bailado sensual do professor, de sua atenção especial à aluna, algo que há anos não recebia do próprio marido. Kathlen quedou-se paralisada com a história e se perguntou como demorara tanto tempo para perceber. Sentiu-se culpada por ter consentido que a irmã continuasse a freqüentar as aulas. No dia da partida, Kathlen foi. Karen ficou.

O romance entre Karen e Roberto tornava-se cada vez mais evidente. Alguns alunos da academia chegavam a comentar, embora ninguém tivesse provas. Após as aulas, Karen saía na frente e esperava Roberto na esquina da casa dele para que ninguém desconfiasse. A austríaca estava cada vez mais apaixonada. Tornara-se também ciumenta. Demonstrava muita contrariedade quando uma nova aluna chegava e Roberto lhe dedicava atenção. Passou a desconfiar quando, algumas vezes, o professor não ia mais com tanta freqüência ao seu encontro.

Até que, certo dia, Karen o seguiu até sua casa sem que Roberto percebesse. Notou a presença de uma jovem atrás de uma das colunas do prédio. Achou tratar-se de uma das novas alunas da turma, mas não teve certeza. Roberto entrou no prédio. Pouco tempo depois, a mulher entrou também. Karen foi embora num misto de fúria, depressão e pânico. Sozinha em um país estranho, sem falar fluentemente espanhol, ficou sem rumo.

Desapareceu das aulas. Ficou dias a andar pela cidade, sem conversar com ninguém, com desejo de voltar à Áustria. Em vez disso, voltou a freqüentar as aulas de espanhol. Decidira permanecer por mais tempo em solo caribenho pensando que o que a esperava na Europa não era tão melhor assim. Reingressou na turma de Soledad e lá fez novos amigos. Todo início de mês uma nova turma começava. Desta vez, alguns canadenses, franceses, italianos e até coreanos. Divertiu-se com as atividades multidisciplinares da professora e até se esqueceu de Roberto por alguns dias. Saiu, bebeu, deu risadas e até dançou com novos pares.

Um desses pares era Andrew. Um canadense 15 anos mais novo que ela. Fã dos ideais de Che Guevara, fora a Cuba conhecer o país onde todas as utopias de um mundo sem saída ainda permaneciam vivas. Ao menos nos longos discursos de Fidel, nos monumentos aos heróis da pátria e nos outdoors espelhados pelas ruas onde se lêem Vamos bien. Andrew era um fã da música cubana e dos filmes de Almodóvar. Por isso, mesmo nunca tendo estudado espanhol antes na sua vida, ingressara no nível intermediário, em que Karen também estudava.

Em um final de semana, a turma decidiu se reunir em frente ao Malecón, espécie de calçadão da orla de Havana, para tocar umas modas havaneras e tomar alguns mojitos. Karen ainda estava um pouco entristecida, porém disposta a esquecer Roberto. Papo vai, papo vem, todos na roda contaram um pouco das suas vidas em seus países. Andrew estava prestes a se casar com Jeniffer quando voltasse. Disse ainda que a moça esperava um filho seu e que estava muito feliz por isso. Fizera aquela viagem com o pretexto de aprender uma língua, mas na verdade, encarava como sua despedida de solteiro.

Karen também contou sobre seu caso com o cubano e seus olhos chegaram a ficar marejados com as recordações. Mas antes que o clima de velório se instalasse, uma música alegre começou a tocar:

A las cinco de la mañana

caiendo me voy caiendo

con una botella´e ron

mi mujer me abandonó

Andrew puxou Karen pelo braço e ambos começaram a dançar. Nenhum dos dois estava lá muito sóbrio e os passos mal sincronizados. Mas nem assim, queriam parar. Riam-se muito, comentavam coisas engraçadas um no ouvido do outro em espanhol, inglês, francês, alemão, não importava. O sol começava a nascer quando Karen se viu entrando no quarto do hotel de Andrew, tirando a roupa e fazendo amor. De tão ébrio, o jovem caiu no sono pesado logo depois de consumado o ato, deixando Karen ainda mais deprimida. Mas, pelos menos, Andrew não escondera sua vida. Contara toda a verdade antes e ela também. Achou graça, gargalhou e sentiu-se, de certa forma, vingada. Melhor assim para os dois, pensou. Bateu a porta, foi-se embora e os dois nunca mais se viram.

Dias depois, caminhando por uma rua do bairro de Vedado, deu de cara com Roberto. O professor a perguntou onde esteve nesse tempo todo, disse-lhe que sentia muita saudade e marcou um encontro. Karen não falou nada. Que o tinha visto com outra mulher, como se sentira depois disso, que pensara em voltar à Áustria, nem se iria encontrá-lo de novo. Foi embora pelo lado oposto de onde Roberto saíra. Mas, no dia e hora marcados estava lá. Desta vez era ela de novo quem se escondia atrás da pilastra. Pouco depois de o professor entrar no prédio, Karen também entrou. Subiu no apartamento, entrou no quarto, não disseram uma só palavra. Karen entregou-se novamente à antiga paixão e os dois fizeram amor como se não o fizessem há anos, tal o frenesi causado pelo contato entre os dois.

Como que evitando se falarem, só após algumas horas foram trocar palavras. Roberto não explicou como, mas soubera da noite em que Karen saíra com outro homem. Quis saber quem era e jurou matá-lo caso ela o visse de novo. Sem responder, a mulher deu o troco falando do dia em que o vira com a mulher na entrada de seu prédio. Ele então contou que se tratava de uma antiga namorada belga que voltara de seu país para visitá-lo. Os dois estavam planejando deixar o país e viver na Europa o mais breve possível. Karen ficou desnorteada e ameaçou se matar. Chorou copiosamente, mas Roberto não deu muitas outras explicações.

Karen deixou a casa de Roberto rumo ao hotel. Depois de seis meses de uma aventura caribenha, decidira finalmente, que era hora de voltar para casa. Concluiu que a partir de então enfrentaria os seus problemas de frente. Dar fim ao casamento fracassado, retomar os estudos e procurar um novo emprego. Formara-se em Música, mas o marido a convencera que deveria ficar em casa e por isso desistira da vida profissional por 15 anos. Arrumou as malas e tomou o primeiro vôo com destino a Viena. No táxi a caminho do aeroporto, pensara nos seis meses em que permanecera em Cuba. Sentiu-se uma nova mulher com um grande futuro e muita vontade de recomeçar. Devia aquilo a Roberto, Andrew, Soledad e a Fidel.

La guagua

Para ir da Universidade à casa de Soledad era preciso esperar la guagua (la uaua, como dizem), nada menos que o transporte coletivo dos habitantes de Havana, cuja passagem custa MN 0,40. Outra opção é ir de camelo (MN 0,10), um ônibus de design muito ultrapassado, importado da antiga União Soviética, espécie de Lada de 48 lugares com duas corcovas no teto do veículo.

Viajar de guagua é uma aventura inesquecível para qualquer estrangeiro que vá a Havana. Além do cuidado com os bolsos traseiros, o aperto no interior do veículo, há que se esperar para embarcar. E como. Uma espera de uma hora, uma hora e meia é lucro. Soledad contava que saía de casa às 4h30 para estar na Universidade às 8h. Não levava a sério até ser convidado a ir a Cojimar. Cheguei ao ponto de ônibus às 10h da manhã e cheguei a sua casa às 15h. Descontando a hora de duração da viagem, calculo que esperei no ponto por quatro horas.

Mas em Havana tudo é surpreendente. Foi justamente neste dia que conheci uma pessoa que marcou minha estada na cidade e no modo como passei a ver o povo cubano. Sentado no ponto, puxei conversa com uma moça. Maria estava grávida de oito meses. Enfermeira desempregada levava nas mãos uma pasta. Era para o marido, um arquiteto igualmente sem trabalho. Estivera em Vedado, bairro central da capital, para buscar com amigos uma pasta na qual o esposo organizaria seu portfólio e buscaria emprego a partir de então.

Apesar do panorama absolutamente desfavorável, a criança que carregava no ventre fazia Maria acreditar demais na felicidade de seu casamento, seus planos futuros e sua felicidade. Jamais maldisse a sorte. Apenas demonstrou desejo de buscar emprego em outro país, onde acreditava poder exercer o seu ofício e garantir o sustento do rebento. Jamais entretanto, desprezou seu país, sua pátria, seu povo, seu comandante-em-chefe. Quando perguntei se acreditava que o país estaria melhor sem Fidel, limitou-se a dizer, “não posso responder esta pergunta”. Sem entretanto deixar claro se por censura ou por desconhecer o dia de amanhã.

Talvez pela esperança de melhores dias em uma nova terra, tenha escrito seu endereço em meu caderno de anotações. Mas não creio que o que vou relatar a seguir tenha sido fruto de interesse oportunista. Depois de quatro horas de espera e muita conversa, finalmente la guagua chegou. Dispensando a gratuidade que seu estado interessante lhe garantia, Maria solidariamente pagou a passagem.

Embarcamos no veículo buscando espaço entre os passageiros que lá dentro já se encontravam. Polidamente, um deles cedeu o lugar para que Maria se sentasse. Esperei em pé ao seu lado. Avisou que deveríamos descer próximo à Rodoviária, onde o ônibus faria o ponto final, para aí então tomar o próximo coletivo. Disse que, tudo bem, mas que ela não precisava fazer o mesmo, pois gozava deste privilégio.

Maria ignorou-me, correu em desabalada carreira os cerca de 300 metros com sua protuberante barriga sob o sol da meia estação cubana e ainda me apressava aos gritos de apurate, apurate. Ao alcançarmos o ponto de ônibus onde eu deveria embarcar, ainda acotovelou-se com os demais passageiros, que não lhe garantiam uma entrada tranqüila no veículo, e ainda resistiu que pagasse a sua passagem, o que, obviamente, fiz questão de fazer.

Tal atitude deixou perplexo o brasileiro nascido e criado no país do "salve-se quem puder", do "jeitinho" e dividido entre malandros e otários. Não sei se o maior ato de generosidade que jamais vi na vida pode ser considerado normal em um país em que nadie tiene nada, segundo palavras da própria Maria, e por isso um gesto de doação, mesmo em benefício a um estranho é visto como “nada mais que obrigação” para um povo que aprendeu a ser solidário.

O fato é simplesmente que fiquei deveras constrangido e sem reação para responder a tamanha gentileza. Tanto que, descemos juntos, mas nos separamos algumas ruas depois. A moça entrou por uma rua de terra batida e sumiu por entre as vielas de Cojimar. Com a agenda atribulada, não pude visitá-la, nem sequer levar uma reles lembrança para a criança que viria ao mundo. Nunca mais a vi e jamais pude retribuir o carinho que Maria teve comigo. Hoje, repleto de remorso, encontro consolo em minhas preces, nas quais rogo para que tudo dê certo para ela, seu marido e seu filho.