quarta-feira, maio 16, 2007

A miserável condição humana


Enquanto raça antropófaga
Enquanto espécie auto-sabotadora
Enquanto seres inertes, servis e auto-indulgentes

Enquanto espectadores da própria desgraça
Enquanto refugiados de si mesmos

Enquanto suicidas coletivos
Enquanto homicidas instintivos

Enquanto devotos idólatras
Enquanto incréus

Enquanto loucos geniais
Enquanto sãos e apenas sãos

Enquanto órfãos da pátria
Enquanto filhos da outra

Enquanto paus-mandados sem comando
Enquanto capatazes sem razão

Enquanto porca e parafuso
Enquanto engrenagens do sistema

Enquanto P.E.A
Enquanto párias
Enquanto V.I.Ps

Enquanto consumidores
Enquanto marcas
Enquanto rótulos

Enquanto Cálice!
Enquanto Pare!
Enquanto Siga!
Enquanto Compre!
Enquanto Beba!
Enquanto Veja!

Enquanto prováveis aspirantes
Enquanto possíveis candidatos
Enquanto eternos pretendentes

Enquanto narcisistas
Enquanto onanistas

Enquanto carne
Enquanto osso
Enquanto pó

Enquanto poeira de estrelas

Enquanto imagem e semelhança

* * * * *

Você deve notar que não tem mais tutu e dizer que não está preocupado

Você deve lutar pela xepa da feira e dizer que está recompensado

Você deve estampar sempre um ar de alegriae dizer: tudo tem melhorado

Você deve rezar pelo bem do patrão e esquecer que está desempregado


Você merece, você merece

Tudo vai bem, tudo legal

Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé

Se acabar em teu Carnaval


Você deve aprender a baixar a cabeça

E dizer sempre: "Muito obrigado"

São palavras que ainda te deixam dizer

Por ser homem bem disciplinado

Deve pois só fazer pelo bem da Nação

Tudo aquilo que for ordenado

Pra ganhar um Fuscão no juízo final

E diploma de bem comportado


Você merece, você merece

Tudo vai bem, tudo legal

Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé

Se acabarem com teu Carnaval?

* * * * *

Olha lá vai passando a procissão

Se arrastando que nem cobra pelo chão

As pessoas que nela vão passando acreditam nas coisas lá do céu

As mulheres cantando tiram versos, os homens escutando tiram o chapéu

Eles vivem penando aqui na Terra

Esperando o que Jesus prometeu


E Jesus prometeu coisa melhor

Prá quem vive nesse mundo sem amor

Só depois de entregar o corpo ao chão, só depois de morrer neste sertão

Eu também tô do lado de Jesus, só que acho que ele se esqueceu

De dizer que na Terra a gente tem

De arranjar um jeitinho prá viver


Muita gente se arvora a ser Deus e promete tanta coisa pro sertão

Que vai dar um vestido prá Maria, e promete um roçado pro João

Entra ano, sai ano, e nada vem, meu sertão continua ao Deus dará

Mas se existe Jesus no firmamento, cá na Terra isso tem que se acabar


* * * * *


Letras:

1 - A miserável condição humana, de Ciço Pereira

2 - Comportamento Geral, de Luiz Gonzaga Jr.

3 - Procissão, de Gilberto Gil


Imagem:

A criação de Adão, de Michelangelo (1508-1512)

3 comentários:

Anônimo disse...

O Ciço está poetando agora né...

adriana nolasco disse...

meu caro primo ciço, eita texto bom. poesia linda, intensa, cruel. coisa de abrir olho. adorei e até pensei em usar no nosso filme. o que você acha? continue, continue que a gente precisa. beijocas e até quase perto.

Anônimo disse...

O brasileiro se auto sabota com o futebol a cerveja o churrasco na calçada a frustração disfarçada de cordial alegria e seu conservadorismo estúpido.
Valeu!!