domingo, outubro 01, 2017

Precisamos ir a Cuba



Um dia, um conhecido me disse, entre um gole e outro de uma cerveja artesanal top: “Cuba é uma merda”. Era um desses sujeitos de classe média com diploma universitário, um emprego qualquer em uma dessas empresas bacaninhas de qualquer coisa e que, por ter um salarinho razoável, um certo status social e ser amigo de outros caras bacaninhas, arrota convicções com a displicência de quem defeca no vaso sanitário.

Mas não. Ele jamais havia estado em Cuba. Eu acho. Ou, é até possível que tenha estado. Mas, se esteve, foi para tomar mojito em Havana Vieja e bucear em Varadero. Dificilmente comeu uma cajita sentado no meio fio de uma calle de Centro Havana, nem esperou por três ou quatro horas para tomar uma guagua.

Grande parte dos brasileiros que proferem juízos de valor a respeito de Cuba o fazem a partir de um ideal capitalista, de uma visão de mundo forjada através de uma lógica de consumo, do liberalismo econômico e de um modelo de democracia burguesa. Muitos daqueles que vão à Ilha justificam o motivo da viagem dizendo: “vim a Cuba antes que Cuba acabe”. Olham para aquela experiência socialista como um fetiche, algo ultrapassado, mas que resiste apenas como uma atração turística com prazo de validade para terminar. Se esquecem que estão em um país da América Central, vizinho do Haiti, República Dominicana, Nicarágua, El Salvador e Honduras, e o comparam à Suíça, Noruega e Dinamarca.

Estive em Cuba em duas oportunidades. Em 2005 e em 2015. Nas duas vezes, o que mais me impressionou foi a solidariedade daquele povo. Não apenas entre si, mas para com qualquer pessoa que aparente estar passando por algum tipo de dificuldade. Na primeira vez, uma mulher com sete ou oito meses de gestação, a quem havia conhecido pouco tempo atrás, durante as intermináveis horas que passei no ponto de uma guagua (ônibus), desceu do coletivo e foi ao meu lado correndo até o ponto seguinte para que eu não perdesse a viagem no próximo que sairia dentro de alguns minutos. Na segunda vez, confuso com as moedas (em Cuba, usa-se o peso cubano e o peso convertible, ou CUC) que usaria para comprar uma garrafa d’água, uma pessoa que passava pela rua, que eu jamais vira antes e jamais voltaria a ver novamente, entregou ao vendedor o valor restante que faltava para que eu concluísse a compra.

Os cubanos não passam todo o tempo de suas vidas preocupados em não serem otários, pesadelo maior do cidadão que vive no país do “jeitinho”. Simplesmente por que, em um país socialista, a competição entre os indivíduos não existe. As dificuldades econômicas são grandes, mas não a ponto de não estender a mão a uma outra pessoa que precise da sua ajuda, seja ela quem for.

A identidade mambí é outra coisa, bastante diferente do otário, ou de seu outro, o malandro. Conta-se que o colonizador espanhol, ao chegar àquela ilha paradisíaca, tentou escravizar o índio. Desacostumado à escravidão, o nativo obviamente resistiu. Passou a ser chamados de mambí, sujeito preguiçoso, indolente. Até hoje, é possível encontrar nas paredes de Centro Havana, grafites com a bandeira cubana seguidos das expressões “mambí” e “yankees go home”. Assim, consolidou-se uma identidade nacional, o mambí, o indivíduo resistente, guerreiro, lutador, que manteve a soberania de seu país, sobrevivendo a um bloqueio genocida, que já dura mais de 60 anos, a diversas tentativas de invasão, ataques terroristas, espionagem e demais tentativas de boicote ao regime.

Hoje, Cuba está em transformação. As gerações mais novas querem novidades, anseiam desesperadamente conectar-se à internet. Por isso, os paquetes (arquivos de filmes, séries, jogos e demais conteúdos salvos em pen drives, que são vendidos nas esquinas, quase como que contrabandeados) são uma coqueluche entre os jovens, em uma realidade em que dez minutos de conexão podem custar o salário de um mês inteiro de trabalho. Também desejam comprar celulares modernos, roupas da moda e demais acessórios, muitas vezes inacessíveis ao cubano médio.

Por esses e outros motivos, foi aprovado, por meio de um referendo popular — naquela que a mídia e a classe média brasileira insistem em chamar de ditadura — os chamados “lineamientos”, uma espécie de gradual abertura econômica para um chamado “Socialismo de mercado”. Com esta proposta, torna-se possível a criação de empresas familiares, iniciativas de empreendedorismo e outras medidas que possibilitam a desvinculação do Estado de seu papel de único regulador da economia local. Pode-se dizer que a cúpula do Partido Comunista Cubano hoje está divida entre uma gestão mais ortodoxa e a abertura econômica. Miguel Diaz-Canel, primeiro vice-presidente do Conselho de Estado de Cuba e apontado como futuro sucessor de Raúl Castro, vê com bons olhos a segunda possibilidade.

Talvez esta alternativa seja inevitável. Diante do bloqueio econômico, da déblâque da União Soviética e da consequente desindustrialização do país, o Turismo foi a única maneira encontrada para a manutenção do regime cubano, a partir dos anos 1990. No entanto, ao mesmo tempo em que possibilitou ao Estado obter recursos suficientes para manter um padrão de excelência em Educação e Saúde — referências em todo o mundo — universais para todos os seus cidadãos, aos poucos vêm minando as convicções socialistas dos mais jovens.

Ainda assim, o legado revolucionário é inegável. O orgulho nacional, a inexistência da miséria, do analfabetismo e da mortalidade infantil, o alto grau de escolaridade e de conscientização política, mas, sobretudo, a solidariedade são valores que dificilmente serão perdidos com uma possível — ou até mesmo provável — transformação da política econômica.

“Os últimos dias em Havana” (em cartaz nos cinemas daqui) mostra com muita sensibilidade exatamente isso. Em um cenário de muitas transformações, o povo cubano permanece solidário, íntegro, digno e orgulhoso. É um filme que precisa ser assistido. Em primeiro lugar para ajudar a desconstruir alguns lugares comuns sobre aquele país tão rico culturalmente, contraditório e, por isso mesmo, tão parecido com o nosso.

Em segundo, para nos fazer refletir sobre a nossa própria realidade. No momento em que as incertezas e as dificuldades tendem a se agravar, precisamos olhar para um outro projeto de nação, que se ocupou da construção de um “novo homem” (usando as palavras de Fidel Castro, quando da morte de Che Guevara), cultivou uma maior harmonia entre os indivíduos, baseada na solidariedade, na coletividade, e não na competição fratricida, no ódio e na violência contra os seus pares como forma de obtenção de privilégios e de distinção social.

“Vai pra Cuba”, dizem aqueles que não querem ir para lá de jeito nenhum e proferem esta frase repletos de ódio contra quem pensa e se posiciona politicamente de maneira diferente. Mas ouso suspeitar de que é preciso ir a Cuba - ao menos através da tela do cinema - como uma forma de tentar tirar o Brasil do caminho sombrio por onde insistem em nos levar.

Quando puder eu vou. De novo. Ah, mas se vou.

sexta-feira, maio 05, 2017

Sonho

Sonho com sangue
E violência
Agrido o outro como punição
Tenho muito ódio em mim

Ódio, o avesso do amor
Mas também sua face oculta
Odiamos aqueles que gostaríamos de amar
Mas a mágoa e o ressentimento
São os elementos que transmutam o amor em ódio

Permaneço agredindo o outro
Acerto em cheio o supercílio
De onde brota uma gota de sangue
Me aproximo do rosto ensanguentado
Revela-se uma face doce e terna

Sofrida
Amargurada
Ressentida
Magoada
Mas não odienta

O ódio dá lugar à culpa
Da culpa surge o amor
Tal qual o amor a Cristo
Aquele que morreu após ser condenado
Pelo populacho que preferiu salvar Barrabrás
Nós matamos Cristo
E por isso devemos amá-lo

Amo aquele a quem agrido
Mas também me culpo
Por violentar o ser amado

Eis que me aproximo ainda mais
Fito o fundo de seus olhos
Posso ver sua alma
Seu coração
Revelo-me então para mim mesmo
Num ritual de auto flagelação onírica
Exercício de depuração
Do sofrimento recalcado

Meu coração sangra
E o sangue escorre pela face aberta
Pelo amor próprio não correspondido
Que se transmuta em ódio

Amo
Odeio
Agrido
Acaricio
Vivo
Morro

Sonho.


Ciço Pereira. 5 de maio de 2017.

É preciso

É preciso parar
E pensar
Sobre a nossa miserável condição
Sobre toda frustração

É preciso rir
De nossos fracassos
Todas as vezes que tentamos seguir

Outros passos
Que não aqueles que nos são sinceros
Que não nasçam de nossos sonhos
De nossos desejos

É preciso fugir 
De tudo aquilo que nos é imposto
Como todo imposto
Que temos a contribuir

É preciso partir
De tudo que não nos afete
Por mais que a dor aperte
E possa nos ferir

É preciso parar
E pensar 
Por mais que possa doer
E nos fazer sofrer.

Ciço Pereira.
Rio de Janeiro, 26 de abril de 2017.

Um lugar

Vivo em um lugar onde acabou a poesia
As pessoas morrem um pouco a cada dia
Ou muito todos os dias

Abunda o preconceito de toda sorte
De cor, gênero, classe, não necessariamente nessa ordem

O pensamento que vigora
Ignora
Aqueles que não são iguais ao sujeito que olha

As pessoas gostam de emitir suas belas
Opiniões mas não costumam gostar de ouvir
Aquilo que se opina sobre elas

Ao falar, costuma-se privilegiar aspectos que favoreçam
Os seus pontos de vista e reduzir aqueles que não o façam

Quando a palavra já não vale nada
A força é utilizada
Para manutenção da ordem instaurada

Muitos passaram a achar nornal
Que a democracia seja apenas uma palavra na manchete do jornal

Alguns não se importam com o que ocorre
Se não for o seu filho aquele que morre

Outros ainda fingem não perceber
Que a sua indiferença ainda vai fazer
De vítima aquele a quem não se quer ver sofrer.

Ciço Pereira
Rio, 19/04/2017.

sexta-feira, março 17, 2017

Revelação














E se você descobrisse de repente
Assim, não mais que de repente
Que tudo isso à sua volta

O amor e o ódio
Deus e o diabo
O dinheiro e o dinheiro
O Estado e justiça
A política e a pós-política
A sua família e o seu trabalho
A sua casa e o seu carro
A sua viagem de férias
O futebol, a novela e a cachaça
Não passam de abstração?

Que só o que existe é você e o outro
E que você e o outro
São uma coisa só
Mas que inventaram todo o resto
Pra você fazer tudo o que eles querem

E você acreditou
E você passou a vida toda acreditando
E você fez
E pode chegar até o final dela ainda acreditando
E você faz

Você mudaria a sua vida?
Ou continuaria fazendo tudo exatamente igual?
Fingindo que não sabe de nada?

Porque é muito difícil descobrir
Que tudo é mesmo uma enorme abstração
E não fazer de conta que tudo isso
Não vale mesmo porra nenhuma.

segunda-feira, março 07, 2016

Soneto para 8 de março



Sim, sou machista, devo dizer
Assim como eu, possivelmente você
Legitimamos a violência contra a mulher
Em cada gesto, palavra, olhar, mesmo sem querer

Enquanto sociedade machista, devemos refletir
Fazer diferente, não apenas fingir
Respeitar aquelas que nos deram a vida
E com elas partilhamos a dor e a delícia sentida

Agradeço e me penitencio pelo homem que sou
A você que me lê, que me sente, que me ama ou amou
Devo a ti cada dia vivido passado ou futuro

São apenas palavras, mas do sentimento são fruto
Aceite-as, pois é tudo que tenho neste momento
Para expressar meu amor, minha dor, minha culpa, meu devotamento.

terça-feira, fevereiro 16, 2016

Alvorada


Após cada sono
Renova-se o sonho

Cada alvorada
Uma nova chance
De fazer diferente
E mudar o destino
De toda gente

Enquanto houver vida
Haverá esperança.

sexta-feira, fevereiro 12, 2016

Agradeço



Hoje eu só quero agradecer
A todas as forças do universo
A todos os elementos
Físicos, químicos e matemáticos

A todas as energias cósmicas
Astrais, elementais e espectrais
A todas as células
Uni e pluricelulares

Ao Oxigênio, Hidrogênio
Carbono e Enxofre (muá-á-á-á)
Aos átomos, elétrons e íons
Às leis da gravidade, de Newton e de Murphy

Aos catetos e à Hipotenusa, ao Pi
E a todas as fórmulas e equações
Que nunca compreendi bem
Mas que tampouco me fizeram mal

Ao caviar, à imparcialidade e à isenção
Que nunca vi, nem comi, só ouço falar

Ao medo que me deu coragem
Ao estresse que me trouxe serenidade
Às ingratidões que me conduziram ao perdão
Às injustiças que me estimularam a determinação
Ao ódio que me levou ao amor

A todos que estiveram comigo
E que por um ou outro motivo
Não estão mais
A você, que chegou até aqui

Ao raio que o parta
Ao cacete a quatro
E à puta que o pariu

Por estar neste mundo entre as pessoas que me cercam e me proporcionaram tantas coisas boas e outras nem tanto e que fizeram de mim o que sou hoje, aqui e agora.

segunda-feira, dezembro 21, 2015

Diez años después ou Cuba e Brasil: reflexos e refrações


“Vá a Cuba antes que Cuba acabe”. A expressão que você já deve ter ouvido algumas centenas de vezes talvez seja a chave para compreender um pouco este país tão complexo e contraditório quanto maravilhoso. Estive em Cuba pela segunda vez em dezembro de 2015, exatamente dez anos depois da primeira. Um pouco mais velho e experiente, mas também mais cansado e chato, lembrei-me de outra expressão popular: “você nunca vai duas vezes ao mesmo lugar”, ou coisa que o valha. Nós mudamos, eles também.

Cuba tem uma atmosfera única. É um lugar encantador e por este motivo espera receber mais de 4 milhões de turistas este ano. O clima é ameno, as pessoas comunicativas, alegres e sorridentes. O cenário é daqueles de filme anos 50, com carros e prédios antigos aos montes e uma trilha sonora que vai dos clássicos de Buena Vista Social Club às envolventes canções de salsa e rumba. O povo cubano assemelha-se muitíssimo ao brasileiro – mais particularmente ao baiano - pela mescla de cores, extroversão, sensualidade, abusando de roupas curtas, justas e coloridas.

Mas o cubano também se destaca pelo alto nível de educação formal, inteligência e sagacidade. É possível falar sobre política, economia, cultura, esportes com qualquer pessoa na rua, dos 12 aos 89 anos. Nos jornais – distribuídos gratuitamente entre os cidadãos do país e a poucos centavos aos turistas – podem ser lidas reportagens e artigos que vão desde o processo de impeachment da presidenta Dilma até a guerra na Síria. Curiosamente o artigo “Quanto espaço ocupa o conhecimento?”, de Osviel Castro Medel, publicado no jornal Juventud Rebelde, em 4 de dezembro, questiona a qualidade dos programas transmitidos pela televisão e das demais formas de entretenimento eletrônico consumidas pelos cubanos. Não por acaso, quando nos identificávamos como brasileiros, a reação imediata era um largo sorriso no rosto seguido da frase: “Me encanta muchísimo las novelas brasileñas”. 

CDRs

Mas a proximidade entre Brasil e Cuba não resiste a uma observação mais atenta ao hábito cubano, estimulado desde a infância e cultivado durante toda a vida, de falar sobre política. O ensino escolar abrange 100% das crianças no país e é possível ver grupos entusiasmados delas nos museus e monumentos da cidade. Na idade adulta, os cubanos participam ativamente dos Comitês de Defesa da Revolução (CDRs), instalados em cada quarteirão de cada cidade do país. Os CDRs foram criados em 1961, após o ataque estadunidense a Playa Gyrón, que vitimou entre 500 e 4 mil pessoas. Após a batalha, vencida pelo exército revolucionário liderado por Fidel Castro, o comandante-em-chefe declarou o caráter socialista da revolução cubana e determinou a criação dos comitês, o que foi seguido com entusiasmo por grande parte dos cidadãos. Na prática, eles funcionam como instrumentos de controle contra possíveis traidores, espiões (sim, a Guerra Fria ainda é uma realidade em Cuba), mas também são locais de discussão sobre política e economia do país e do mundo, o que faz com que seus membros sejam pessoas com elevada capacidade de análise e reflexão. 

Conversar com as pessoas nas ruas, nas casas e no comércio é a melhor maneira de verificar a perspicácia do povo cubano. Tivemos o privilégio, ainda, de participar de um congresso de pesquisadores de Comunicação Social, realizado em Havana, entre o dia 7 e 11 de dezembro, e assistir a palestras de intelectuais daquele país. Em resposta aos que consideram Cuba uma ditadura e seu povo doutrinado, o professor José Ramón Vidal, da Universidade de Havana (UH) e jornalista do Juventud Rebelde, destacou o esforço do governo cubano em tentar acompanhar as inúmeras transformações em curso na Ilha. Podemos conhecer uma dessas mudanças mencionadas no trabalho dos pesquisadores Cinthya Cabrera Tejera, Liliam Marrero e Fidel A. Rodríguez, também da UH, sobre os paquetes eletrônicos. Trata-se de conteúdo audiovisual vendido no mercado paralelo. Por uma módica quantia é possível comprar cerca de 50G de séries e filmes americanas, mexicanas, colombianas, brasileiras, chinesas, turcas, iranianas... que não estão disponíveis nos canais de TV aberta. Como o acesso à internet é caro e a conexão, muito ruim, os paquetes estão ganhando cada vez mais espaço entre as novas gerações. E o controle deste comércio, ainda que fosse tentado, seria quase impossível.

Mambí

Estar em Havana é muito mais do que caminhar pelo Malecón, passear em Havana Vieja, tomar mojito, fumar um puro e ouvir algum grupo tocando “Chan Chan” na Bodeguita del Medio. É fundamental visitar, pelo menos, os museus de la Revolución, de Arte Cubano e o Memorial José Martí. Eles são imprescindíveis para compreender por que os cubanos têm o jeito meio malandro, irreverente, rebelde. É um povo que lutou duas vezes por sua independência – entre 1895 e 1898, contra a Espanha – e em 1959 - quando Camilo Cienfuegos, Célia Sanchez, Ernesto Che Guevara, Fidel Castro Ruz, Haydée Santamaria, Melba Hernández, Raúl Catro Ruz, Wilma Espín, e demais revolucionários derrubaram Fulgêncio Batista, o ditador a serviço dos Estados Unidos. A índole de desobediência aos colonizadores espanhóis deu origem ao termo mambí, inicialmente de caráter pejorativo. Com o tempo, o adjetivo tornou-se motivo de orgulho e forjou a identidade de todo o povo.

Para a conformada elite brasileira é um tapa na cara aprender como representantes da alta intelectualidade cubana recorreram às armas para libertar a sua gente. José Martí, graduado em Direito, Literatura, Filosofia e Letras, ganhou notoriedade por meio de seus poemas e crônicas, que inspiraram a luta pela libertação cubana em relação à Espanha. Em 1895, ao lado de Máximo Gomez, Antonio Maceo, Calixto Garcia e outros, lidera a guerra da independência, mas é ferido de morte em combate. Torna-se mártir e o maior herói cubano, ou simplesmente El Apóstol. A independência de Cuba é reconhecida pelos Estados Unidos em 1898, mas em troca, o país torna-se mais uma das repúblicas de bananas da América Central, onde os yanques vão divertir-se com o jogo e a prostituição de baixo custo. Em 1959, o jovem advogado Fidel Castro (filho de um rico fazendeiro espanhol) lidera um exército guerrilheiro que se embrenha pelas serras Maestra e Escambray para derrubar a ditadura de Batista financiada pelos Estados Unidos. Após o triunfo, estatizam latifúndios, promovem a reforma agrária, democratizam o acesso à saúde, à educação, erradicam o analfabetismo e a mortalidade infantil e estabelecem a justiça social na Ilha.

O embargo estadunidense, até hoje vigente, é um entrave importante para o desenvolvimento econômico do país. Com o fim da União Soviética, em 1991, a situação se agrava e o país adota cada vez mais o turismo como principal atividade econômica. O assédio sofrido pelos turistas nas ruas é um sintoma disso. O valor do CUC (ou Peso Convertible, moeda utilizada pelos estrangeiros) é equivalente ao Euro e é preciso estar muito atento para não gastar além da conta. Em Trinidad, localizada na província de Sancti Spiritus, os turistas são recebidos na rodoviária por uma fileira de pessoas que oferecem hospedagem, restaurantes, taxis, passeios a cavalo e demais serviços. Ao dobrar uma esquina não se assuste com uma abordagem imprevista seguida da pergunta “De que parte son?” e do oferecimento de um bom lugar para jantar e ouvir música. Aqueles que conquistam clientes recebem comissão. Ainda que possa incomodar, é preciso ponderar. Afinal, trata-se de 11 milhões de pessoas que, após duas lutas pela sua independência, continuam a pelear.

Socialismo

A situação do país hoje parece muito complexa, difícil de ser analisada em breves e apressadas linhas como essas, e uma previsão, inútil. No entanto, voltando à frase que inicia este texto, penso que ela pode nos dar uma pista. Ao encontrar dezenas de turistas alemães tanto em Havana como em Trinidad, perguntei a três deles, em diferentes momentos, o motivo pelo qual tantos visitavam a Ilha. Todos responderam a mesma coisa. Mas, ao contrário do que eu supunha, a resposta não foi o valor da viagem, mas sim: “queria vir a Cuba antes que Cuba acabe”. Fiquei com aquela frase na cabeça alguns dias até que lembrei-me de John e Jean Comaroff, autores de “Ethnicity, Inc” (2009). Neste livro, o casal de antropólogos sul-africanos fala sobre como as identidades nacionais de diversas culturas ao redor do mundo tornam-se valores a serem agregados ao seu preço final no mercado do turismo. Por exemplo, um líder xamã de uma pequena cidade peruana que ensina aos estrangeiros os mistérios de sua tribo. Uma cidade no Quênia, em que os turistas pagam para conhecer as peculiaridades da cultura africana. Ou, para ser mais claro, os chamados jeep tours, em que turistas louros e brancos sobem a bordo de veículos camuflados, tais como seus similares de guerra, para conhecer as favelas cariocas. Em suma, em um mundo globalizado, onde as grandes cidades tornam-se cada vez mais semelhantes, com arranha céus, letreiros luminosos de fast foods, marcas de aparelhos eletrônicos e instituições bancárias transcontinentais, paga-se caro para ter acesso ao que nos é diferente, peculiar, exótico. No caso de Cuba, parece-me que o socialismo morreu e ressuscitou como commodity. Todos querem ir até à Ilha comprar suas guayaberas, boinas e demais souvenires revolucionários, fotografar os carros antigos e os conjuntos de prédios de arquitetura Art Noveau e Art Déco

Paradoxalmente, o povo cubano anseia consumir. E parece-me que hoje ainda mais do que dez anos atrás. Talvez por causa do próprio turismo, que alimenta o desejo por novidades de um mundo tecnológico, ainda distante. Ao mesmo tempo em que suas necessidades básicas de saúde, educação, alimentação e higiene estão satisfeitas, aquele que pode proporcionar-lhes esta saciedade capitalista é justamente o turista que foi atrás dos resquícios do socialismo. Assim como a “Cidade Maravilhosa”, hoje devastada por anos de má gestão, poluição no mar, na terra e no ar, violência urbana, trânsito caótico e demais males, o Socialismo em Cuba é uma utopia que turistas anseiam conhecer. Ao mesmo tempo em que o ideário socialista contribui para preservar o regime ainda vigente, é ele que sustenta o turismo que pode, um dia, liquidar o seu próprio legado.

Um exercício de futurologia é quase sempre arriscado, mas ouso apostar minhas últimas moedinhas de CUC que Cuba não vai acabar como temem os alemães. Ela estará lá sempre, com seus carrinhos, predinhos e boinas, à espera dos incautos turistas. No entanto, prever se o legado da revolução resistirá a um futuro capitalista é impossível. 

Referências

COMAROFF, John L. e Jean. Ethnicity, Inc. University of Chicago Press: Chicago, 2009.

JUVENTUD REBELDE. Diário de la juventud cubana. Edición Digital. Disponível em . Último acesso em 22 dez. 2015.

MEDEL, Osviel Castro. ¿Cuánto espacio ocupa el conocimiento? Juventud Rebelde. Viernes, 4 de diciembre de 2015, p. 02.

PORTAL JOSÉ MARTÍ. Disponível em http://www.josemarti.cu/. Último acesso em 21 dez. 2015.

TEJERA, Cinthya Cabrera, MARRERO, Liliam, RODRÍGUEZ, Fidel A. Rutas USB. Acercamiento a la gestión de contenidos audiovisuales en el formato Paquete que realizan actores no institucionales em redes informales em La Habana. Apresentação de pôsteres. Eje temático 2: Descolonización, identidade cultural y tecnologias de la información y la comunicación. VII Encuentro Internacional de Investigadores y Estudiosos de la Información y la Comunicación. IX Congreso Internacional de la Unión Latina de la Economia Política de la Información, la Comunicación y la Cultura.  La Habana. 7 -11 Diciembre, 2015.



Texto e Fotos: Ciço Pereira
Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 2015.