quarta-feira, maio 23, 2007

Realidade, um prato muito indigesto

Os comentários mais recorrentes que ouvi a respeito diziam ser “pesado” e “forte”. Definitivamente, o prato está por demais apimentado para o paladar açucarado da classe média burguesa formadora de opinião do sudeste do Brasil, acostumados aos quitutes insossos do horário nobre. A verdade de um cineasta nascido em Pernambuco é como pimenta nos olhos sensíveis do público médio pequeno burguês. Baixio das bestas não é um filme moral como os filmes da sessão da tarde, nem tem um final feliz como as novelas das oito. Não há mocinhos. Os bandidos – sim, eles existem – nem sempre se dão mal. E o end quase nada tem de happy. O realismo está além do horizonte de realidade que os olhos do povo que vive de frente para o mar e de costas para o Brasil podem enxergar. Cláudio Assis mostra que os problemas do país não cabem em uma edição do Jornal Nacional, pois o nosso 11 de setembro é diário e não há sabão em pó, amaciante e cerveja da Boa que limpe e amacie nossa crueza e nos embriague a ponto de nos fazer esquecer da nossa miserável condição.

quarta-feira, maio 16, 2007

A miserável condição humana


Enquanto raça antropófaga
Enquanto espécie auto-sabotadora
Enquanto seres inertes, servis e auto-indulgentes

Enquanto espectadores da própria desgraça
Enquanto refugiados de si mesmos

Enquanto suicidas coletivos
Enquanto homicidas instintivos

Enquanto devotos idólatras
Enquanto incréus

Enquanto loucos geniais
Enquanto sãos e apenas sãos

Enquanto órfãos da pátria
Enquanto filhos da outra

Enquanto paus-mandados sem comando
Enquanto capatazes sem razão

Enquanto porca e parafuso
Enquanto engrenagens do sistema

Enquanto P.E.A
Enquanto párias
Enquanto V.I.Ps

Enquanto consumidores
Enquanto marcas
Enquanto rótulos

Enquanto Cálice!
Enquanto Pare!
Enquanto Siga!
Enquanto Compre!
Enquanto Beba!
Enquanto Veja!

Enquanto prováveis aspirantes
Enquanto possíveis candidatos
Enquanto eternos pretendentes

Enquanto narcisistas
Enquanto onanistas

Enquanto carne
Enquanto osso
Enquanto pó

Enquanto poeira de estrelas

Enquanto imagem e semelhança

* * * * *

Você deve notar que não tem mais tutu e dizer que não está preocupado

Você deve lutar pela xepa da feira e dizer que está recompensado

Você deve estampar sempre um ar de alegriae dizer: tudo tem melhorado

Você deve rezar pelo bem do patrão e esquecer que está desempregado


Você merece, você merece

Tudo vai bem, tudo legal

Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé

Se acabar em teu Carnaval


Você deve aprender a baixar a cabeça

E dizer sempre: "Muito obrigado"

São palavras que ainda te deixam dizer

Por ser homem bem disciplinado

Deve pois só fazer pelo bem da Nação

Tudo aquilo que for ordenado

Pra ganhar um Fuscão no juízo final

E diploma de bem comportado


Você merece, você merece

Tudo vai bem, tudo legal

Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé

Se acabarem com teu Carnaval?

* * * * *

Olha lá vai passando a procissão

Se arrastando que nem cobra pelo chão

As pessoas que nela vão passando acreditam nas coisas lá do céu

As mulheres cantando tiram versos, os homens escutando tiram o chapéu

Eles vivem penando aqui na Terra

Esperando o que Jesus prometeu


E Jesus prometeu coisa melhor

Prá quem vive nesse mundo sem amor

Só depois de entregar o corpo ao chão, só depois de morrer neste sertão

Eu também tô do lado de Jesus, só que acho que ele se esqueceu

De dizer que na Terra a gente tem

De arranjar um jeitinho prá viver


Muita gente se arvora a ser Deus e promete tanta coisa pro sertão

Que vai dar um vestido prá Maria, e promete um roçado pro João

Entra ano, sai ano, e nada vem, meu sertão continua ao Deus dará

Mas se existe Jesus no firmamento, cá na Terra isso tem que se acabar


* * * * *


Letras:

1 - A miserável condição humana, de Ciço Pereira

2 - Comportamento Geral, de Luiz Gonzaga Jr.

3 - Procissão, de Gilberto Gil


Imagem:

A criação de Adão, de Michelangelo (1508-1512)

quinta-feira, maio 10, 2007

Alô, atenção!

Um minuto para os nossos comerciais. Quem não se comunica se estrumbica, já dizia o velho guerreiro. Sendo assim, gostaria de indicar alguns blogs interessantes para quando estiveres desocupado no trabalho, de mal com a mulher em casa ou se tiveres alguns minutos sobrando no counter do cyber café. Confiram na lista de links ao lado.

sexta-feira, maio 04, 2007

Os filhos da época

Somos os filhos da época,
e a época é política.
Todas as coisas - minhas, tuas, nossas,
coisas de cada dia, de cada noite
são coisas políticas.
Queiras ou não queiras,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,teus olhos, um brilho político.
O que dizes tem ressonância,
o que calas tem peso
de uma forma ou outra - político.
Mesmo caminhando contra o vento
dos passos políticos
sobre solo político.
Poemas apolíticos também são políticos,
e lá em cima a lua já não dá luar.
Ser ou não ser: eis a questão.
Oh, querida que questão mal parida.
A questão política.
Não precisas nem ser gente
para teres importância política.
Basta ser petróleo, ração,
qualquer derivado, ou até
uma mesa de conferência cuja forma
vem sendo discutida meses a fio.
Enquanto isso, os homens se matam,
os animais são massacrados,
as casas queimadas,
os campos se tornam agrestes
como nas épocas passadas
e menos políticas.

De WISLAWA SZYMBORSKA, poetisa polonesa, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 1996.
Tradução: Ana Cristina César

4 décadas de 100 anos


Era Prudêncio Aguilar quem o limpava, quem lhe dava de comer e quem lhe levava notícias esplêndidas de um desconhecido que se chamava Aureliano e que era coronel de guerra. Quando só, ele se consolava com o sonho dos quartos infinitos. Sonhava que se levantava da cama, abria a porta e passava para outro quarto igual, com a mesma cama de cabeceira de ferro batido, a mesma poltrona de vime e o mesmo quadrinho da Virgem do Remédios na parede do fundo. Desse quarto passava para outro exatamente igual, cuja porta abria para passar outro exatamente igual, e em seguida para outro exatamente igual, até o infinito. Gostava de ir de quarto em quarto, como numa galeria de espelhos paralelos, até que Prudêncio Aguilar lhe tocava o ombro. Então voltava de quarto em quarto, acordando para trás, percorrendo o caminho inverso e encontrava Prudêncio Aguilar no quarto da realidade. Uma noite, porém, duas semanas depois de o terem levado para a cama, Prudêncio Aguilar tocou-lhe o ombro num quarto intermediário, e ele ficou ali para sempre, pensando que era o quarto real.

No ano em que se completam 4 décadas do lançamento de Cem anos de solidão, releio o livro de García Márquez. O livro é tão avassaladoramente belo que, ao terminá-lo, precisei de alguns meses até passar ao próximo. É como saborear um prato tão divinamente saboroso que precisa-se de alguns dias até a próxima refeição para que o sabor não saia da boca.

A protagonista da trama sem dúvida nenhuma é a cidade de Macondo. Gabo, dizem, inspirou-se em sua cidade natal Aracataca, na Colômbia. É lá que chegam e partem, nascem e morrem incontáveis personagens. Tantos que a edição especial em homenagem aos 40 anos do livro trará a árvore genealógica da Família Buendía. As personalidades antagônicas de José Arcadios e Aurelianos vão se repetindo ao longo de um século em que a saga da família é narrada.

Macondo poderia perfeitamente ser qualquer cidadezinha do Brasil, Paraguai ou Nicarágua. Assim como os Buendía poderiam se chamar Silva, Hernandez ou Gimenez. Ciganos, ianques usurpadores, videntes, prostitutas, virgens, rebeldes, militares e muita gente humilde fazem parte de um universo fantástico e ao mesmo tempo extremamente real e atual. A guerra travada pelo coronel Aureliano Buendía tem início quando um interventor federal chega a Macondo e quer mudar a cor das casas dos moradores. Filho de José Arcádio Buendía, um dos fundadores da cidade, Aureliano rebela-se e inicia o conflito que se estende por décadas ao longo do livro. Progressistas e conservadores guerreiam incansavelmente, mas nenhum dos dois lados jamais chega à vitória. Ao fim, quando representantes do poder federal chegam para negociar a paz, o coronel chega à conclusão que todo o sangue derramado, todas as traições e famílias perdidas durante o conflito tiveram como única e exclusiva causa a sua própria vaidade.

Mas talvez somente o amor faça mais vítimas no livro do que a guerra. Uma inexplicável maldição deixa um rastro cadáveres por onde passa Úrsula, a mulher mais bela do mundo, para que nenhum homem deste planeta se atreva a tentar conquistar seu coração. E Amaranta, igualmente incapaz de amar, passa pela vida intocável por se negar a entregar-se a qualquer pretendente. O maior e verdadeiro amor é o mais proibido. Por mais que sua avó Fernanda del Carpio tentasse impedir, Aureliano Babilônia conhece a tia Amaranta Úrsula e os dois vivem a última – e talvez a mais verdadeira - história de amor que Macondo presencia.

Úrsula Iguarán Buendía, a matriarca da família, é o eixo, o pilar de sustentação do clã. Dizem que viveu mais de 150 anos, mas poucos sabem ao certo. A morte sempre fez parte de sua vida e seu carma foi enterrar marido, filhos, netos, bisnetos... Mas sempre se manteve disposta a receber os hóspedes em sua casa, mesmo em tempos de guerra, quando a cidade era tomada por inimigos dispostos a liquidar sua estirpe. Sua derrocada foi também o início do declínio dos Buendía.

O título do livro remete aos 100 anos entre a chegada de José Arcádio Buendía, Úrsula e os demais fundadores a Macondo, até o dia em que um vendaval de proporções bíblicas varre a cidade do mapa. Apesar dos muitos integrantes da família, a narrativa nos faz enxergar a solidão existente dentro de cada um deles. Mesmo os José Arcadios, tradicionalmente mais expansivos que os Aurelianos, viviam seus momentos de profunda tristeza e desamparo, principalmente às vésperas da morte. José Arcádio II, irmão gêmeo de Aureliano II, enfurnou-se no quarto do cigano Melquíades e de lá não saiu mais depois de presenciar o assassinato de 3 mil pessoas em praça pública pelas tropas federais.

Aureliano Babilônia é quem finalmente desvenda os pergaminhos de Melquíades. Filho bastardo de Renata Remédios com o humilde operário Maurício Babilônia, é feito refém em sua própria casa e só é libertado pelo amor. Com Amaranta Úrsula concebe o último Buendía e vê a profecia do cigano se cumprir: O primeiro da estirpe está amarrado a uma árvore e o último está sendo comido pelas formigas. Então sua reação não é de dor, nem de revolta, mas sim, de resignação ao seu próprio destino. Em meio aos ventos apocalípticos, presencia o fim de Macondo e o seu próprio.

Então deu outro salto para se antecipar às predições e averiguar a data e as circunstâncias de sua morte. Entretanto, antes de chegar ao verso final, já tinha compreendido que não sairia nunca daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilônia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra.